Eu estava em Washington na noite do último domingo, quando foi anunciada a morte de Bin Laden, e revi cenas de júbilo patriótico em frente à Casa Branca, especialmente por parte de jovens. Cenas como as que presenciara três anos antes em Nova York, onde a vitória de Barack Obama provocara o que classifiquei então de “clima de fim de campeonato, com vitória dos Yankees ou do Knicks, todos na rua gritando e cantando, principalmente jovens e negros, buzinaço pelas ruas, festa no Harlem, em Times Square, na Rockfeller Plaza”.
Não sou capaz de dizer se os jovens que fizeram a festa pela morte de Bin laden em Washington, Nova York e várias partes dos EUA são os mesmos que, em 2008, foram em número recorde às urnas para eleger Obama com o sentimento de estar contribuindo para mudar o país e o mundo, como Obama ressaltava em seus discursos.
Mas sei que boa parte daquelas boas intenções iniciais do governo Obama ficou pelo caminho diante da realidade do combate ao terrorismo.
Enquanto o presidente Bush alegava querer disseminar a democracia pelo mundo e utilizava guerras para impor o regime, Obama se propunha a mostrar as vantagens da democracia através do exemplo e do respeito ao outro.
Questões emblemáticas da mudança de comando no governo, como o fechamento da prisão de Guantánamo e o fim da tortura como método de interrogatório a presos da guerra ao terror, hoje são motivo de discussão nos EUA, pois foi em Guantánamo que um preso revelou, sob tortura de simulação de afogamento, a identidade do mensageiro que fazia a ligação de Bin Laden com seu grupo, dando as informações necessárias para localização e eliminação do inimigo no- 1 dos EUA.
O desrespeito à Convenção de Genebra com relação aos presos políticos na época do presidente George W. Bush tinha a aprovação deste, e a autorização para que técnicas de afogamento fossem usadas nas prisões de Guantánamo e Abu- Grahbi, no Iraque, partiu diretamente do ex-secretário de Defesa Donald Rumsfeld.
Havia dentro do governo o consenso de que a tortura era método rápido e eficiente para tirar informações de terroristas, e essa tese foi defendida com todas as letras pelo vice Dick Cheney mesmo após Obama, já eleito, fazer campanha contra a tortura como método oficial de combate ao terror.
Essas técnicas de tortura foram utilizadas de maneira sistemática e oficial pelo menos até 2004, segundo um relatório do Senado daquela época, que indicava que haviam sido interrompidas quando o atual secretário de Defesa, Roberto Gates, assumiu em lugar de Rumsfeld no segundo mandato de Bush.
Com a divulgação de documentos pelo Wikileaks, sabe-se que o sistema de tortura continuou sendo utilizado em Guantánamo. A política de assassinato seletivo é usada regularmente por Israel contra seus inimigos, e tem até mesmo uma decisão da Suprema Corte de Israel respaldando-a.
A favor do governo americano há o fato inconteste de que um dos helicópteros usados na operação foi derrubado por seguranças de Bin Laden, o que significa que havia intenção de reagir à ação militar dos EUA.
Não há dúvidas também de que, se fosse preso e levado a julgamento, Bin Laden se transformaria em motivo de tentativas diversas de terroristas para resgatá-lo ou de atentados para protestar contra sua prisão.
Estaria também em condições de continuar pregando sua guerra santa contra o Grande Satã, os Estados Unidos.
O procurador-geral da Justiça — o equivalente ao nosso ministro da Justiça —, Eric Holder, que assumiu no início do governo Obama com a tarefa prioritária de desmontar a máquina jurídica criada no governo Bush para justificar os abusos aos direitos humanos, é o mesmo que ontem, na Comissão de Justiça do Senado dos EUA, definiu Bin Laden como “legítimo alvo militar”, e que a operação foi um ato de “autodefesa” dos EUA, justificando o fato de o líder terrorista ter sido morto mesmo estando desarmado com a ilação de que “não há qualquer indicação de que Bin Laden tentou se render”.
Obama mantém de maneira geral sua postura de abertura maior para o mundo e sem dúvida quer transformar os EUA em país amado, e não temido.
Mas a operação que acabou na morte de Bin Laden foi típica ação de imposição de força por parte de potência imperial, que não respeita regras nem territórios para atingir suas metas.
Desse ponto de vista, parecese mais com o governo Bush do que com a proposta vitoriosa em 2008, mas parece também, aos olhos da vasta maioria dos americanos, mais capaz de defender os interesses do país do que parecia dias antes.
Várias vezes o governo Obama foi comparado ao de Jimmy Carter, que, como ex-presidente, ficou melhor do que quando estava sentado no Oval Office.
Até mesmo o fato de ter ganhado o Nobel da Paz o aproximava de Carter, com uma diferença: Obama ganhou quando comandava duas guerras, em pleno exercício de poder, enquanto Carter levou por sua atuação fora da Presidência.
Mas os dois se diferenciaram fundamentalmente como líderes quando Obama saiu-se vitorioso na promessa de campanha de caçar e matar Bin Laden, livrando-se não apenas da fama de ingênuo e frágil na política externa como da ridícula acusação de que seria muçulmano.
A morte de Bin Laden fará crescer as possibilidades de Obama se reeleger, ao contrário do que aconteceu com Carter, que falhou fragorosamente na tentativa de recapturar os reféns americanos no Irã.
Nenhuma crítica internacional ou mesmo interna abalará a imagem de Obama junto à ampla maioria dos americanos, que deve ficar até mais forte do que a externa, numa inversão de papéis desde sua eleição.
O papel central agora caberá à economia, estúpido, que pode levar de roldão a popularidade de um presidente como fez com George Bush pai, com índices lulistas de popularidade depois da Guerra do Golfo, mas derrotado pela crise econômica.
Fonte: O Globo, 05/05/2011
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