A disputa entre Estados Unidos e China atingiu nesta semana um novo patamar. Os últimos lances transformaram em guerra cambial o que antes era uma guerra comercial envolvendo cotas e tarifas. Se as consequências para a economia global já eram graves, elas agora poderão se tornar ainda mais dramáticas.
É preciso recuar pelo menos três lances no tabuleiro para entender por quê. Primeiro, o clima parecia ter arrefecido na reunião do G-20, em Osaka, no fim de junho. Depois do encontro com o líder chinês, Xi Jinping, o presidente americano, Donald Trump, decidiu segurar uma nova rodada de tarifas que planejava impor sobre US$ 300 bilhões em importações da China (fora os 25% já impostos sobre US$ 250 bilhões).
Em troca, Trump esperava da China abertura para as exportações americanas. Desde o início da guerra comercial, porém, as vendas de produtos agrícolas para a China caíram de US$ 19,5 bilhões (2017) para US$ 9,1 bilhões (2018) e, no primeiro semestre, perderam mais US$ 1,8 bilhão. Ao todo, as exportações americanas cresceram 9% em um ano, até setembro de 2018, mas desde então o crescimento anual caiu a menos de 2,5%. Nos últimos trimestres, elas têm caído.
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A ideia, propagada por Trump, de que as tarifas ajudariam a reduzir o déficit comercial americano também revelou-se uma quimera. Visto como problema por Trump e economistas que o aconselham (uma ala marginal na academia), o déficit comercial foi no ano passado de US$ 875 biilhões, acima dos US$ 793 bilhões registrados em 2017 e dos US$ 735 bilhões de 2016. Até junho, chegara a US$ 433 biilhões, também acima dos US$ 421 bilhões do primeiro semestre de 2018.
O segundo lance partiu dos chineses. Não apenas a China não se dispôs a ampliar as importações dos Estados Unidos, mas impôs tarifas retaliatórias médias de 21% sobre US$ 110 bilhões. Em paralelo, reduziu as taxas de importação de outros países, de modo a manter a demanda atendida. Ao longo de 2018, as importações chinesas dos Estados Unidos caíram, enquanto aumentaram as do restante do planeta.
O terceiro lance na disputa foi a redução da taxa de juros pelo Fed na semana passada, a primeira desde a crise financeira de 2008. A medida teve como objetivo manter a economia americana em rota de crescimento, para compensar os efeitos da guerra comercial nos setores que dependem das importações chinesas. O efeito colateral esperado seria o apelo menor dos investimentos em papeis do governo americano e consequente queda do dólar, favorecendo os exportadores.
A reação chinesa não demorou. Ao desvalorizar sua moeda, o Banco do Povo da China deixou que ela rompesse, também pela primeira vez em 11 anos, a barreira psicológica de sete iuanes por dólar. No mesmo dia, os Estados Unidos classificaram a China como “manipuladora cambial”, categoria que permite retaliações ainda mais duras e, embora prometida por Trump na campanha eleitoral, fora evitada nos últimos cinco relatórios do Departamento de Comércio (o último deles em maio).
A transformação da guerra comercial numa disputa cambial põe o mundo numa disputa semelhante à que viveu antes da Segunda Guerra, depois que o governo americano elevou as tarifas de importação em 1933. A escalada protecionista levou diversos outros países a retaliar desvalorizando a própria moeda, para tentar proteger seus produtores. A reação atual deverá começar pelas economias asiáticas, cuja produção está vinculada à China.
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O preço é pago pelos empobrecimento dos consumidores – em qualquer situação, a maioria da população. O dinheiro perde poder de compra, pois as tarifas levam ao aumento de preço nos produtos que dependem de importações e à alta na inflação. A guerra comercial e cambial desfaz os ganhos que o livre-comércio traz ao consumo, à produção e aos investimentos. Não é coincidência que a reação dos mercados tenha sido tão intensa no mundo todo.
O que esperar daqui para frente? Tudo depende dos dois líderes. Trump confia na economia para vencer a eleição em 2020. Seu protecionismo mira eleitorados estratégicos, como a indústria do Meio Oeste. Assim como a esbórnia fiscal de Dilma Rousseff levou tempo até que seus efeitos fossem sentidos na economia, também a guerra comercial deverá demorar a afetar os índices de emprego. Xi, um ditador que não precisa vencer eleição, pode reagir pensando em prazos maiores. Ambos deveriam saber que uma disputa dessa natureza não tem vencedor.
Fonte: “G1”, 06/08/2019