Como vimos na primeira parte deste artigo, Freyre rompeu com velhos pensamentos preconceituosos e reducionistas e aclamou a participação do negro e do índio no processo de formação do caráter nacional.
Na obra Casa-Grande & Senzala, Gilberto revelou a presença do negro em diversas facetas da nossa cultura, como na música, na dança, no vocabulário e na culinária. De igual maneira procedeu com os índios, explicando a origem do nosso hábito de dormir em redes, de se pintar, de tomar banho diariamente, bem como a valorização das ervas, da cor vermelha e dos remédios caseiros.
Em vez de aclamação social, as obras de Freyre despertaram ondas de protestos em todas as camadas. Por conta da linguagem vulgar, recebeu o título de pornógrafo do Recife e a Igreja Católica repudiava constantemente as suas publicações, consideradas atentatórias à moral e aos bons costumes. Foi tachado de anticatólico, comunista, anarquista, agitador, antilusitano, africanista, dentre outras alcunhas.
O pensamento exposto por Gilberto Freyre encontra resistências até hoje, aparentemente pelo fato de não ter situado o problema racial no Brasil como um problema exclusivamente de cor ou por não ter sido partidário da revolta dos negros contra os brancos. O que torna as críticas ainda mais pitorescas, decerto, é o fato de serem formuladas, em sua maioria, por representantes do movimento negro, justo a cor a que Gilberto fez questão de homenagear, por haver lhe conferido importância nunca dantes exposta com tanta franqueza. Nessa linha, bem demonstrou Darcy Ribeiro, no texto Gilberto Freyre — Uma introdução à Casa-Grande & Senzala:
“Com efeito, o que mais provocou a sensação e surpresa aos primeiros leitores de Casa-Grande & Senzala foi o negrismo de Gilberto Freyre. Ele vinha dizer — ainda que em linguagem meio desbocada, mas com todos os ares de cientista viajado e armado de erudições múltiplas — que o negro — no plano cultural e de influência na formação social do Brasil — fora não só superior ao indígena (…) mas até mesmo ao português, em vários aspectos da cultura material e moral, principalmente da técnica e da artística”.
Causa certa perplexidade o fato de alguns dos intelectuais do movimento negro acusarem Freyre de haver difundido no Brasil o mito da democracia racial, qual seja, a lenda de que no País o preconceito racial não existe e que as relações entre as raças são perfeitas e harmônicas. Na verdade, esclareça-se, em nenhuma passagem do livro Casa-Grande & Senzala Gilberto usou a expressão democracia racial. Sobre isso, o antropólogo Hermano Vianna ousou dizer que há, no País, um mito sobre o mito da democracia racial.
Nessa linha, a vida de Gilberto Freyre, após a obra Casa-Grande passou a ser um eterno explicar-se. Incansavelmente, repetia que não fora criador do mito da democracia racial e que o fato de seus livros terem reconhecido a intensa miscigenação entre as raças no Brasil não significava decerto a ausência de preconceito ou de discriminação. Exemplo de desabafo contrário à acusação de ter criado a idéia de equilíbrio racial no Brasil pode ser extraída da entrevista realizada com o autor em 15/3/1980. À pergunta: “Até que ponto nós somos uma democracia racial?”, formulada pela jornalista Lêda Rivas, Freyre respondeu:
“(…) Democracia política é relativa. (…). Sempre foi relativa, nunca foi absoluta(…).Democracia plena é uma bela frase (…) de demagogos, que não têm responsabilidade intelectual quando se exprimem sobre assuntos políticos. (…). Os gregos, aclamados como democratas do passado clássico, conciliaram sua democracia com a escravidão. Os Estados Unidos, que foram os continuadores dos gregos como exemplo moderno de democracia no século XVIII, conciliaram essa democracia também com a escravidão. Os suíços, que primaram pela democracia direta, até há pouco não permitiam que mulher votasse. São todos exemplos de democracias consideradas, nas suas expressões mais puras, relativas. (…). O Brasil (…) é o país onde há uma maior aproximação à democracia racial, quer seja no presente ou no passado humano. Eu acho que o brasileiro pode, tranqüilamente, ufanar-se de chegar a este ponto. Mas é um país de democracia racial perfeita, pura? Não, de modo algum. Quando fala em democracia racial, você tem que considerar [que] o problema de classe se mistura tanto ao problema de raça, ao problema de cultura, ao problema de educação. (…) Isolar os exemplos de democracia racial das suas circunstâncias políticas, educacionais, culturais e sociais, é quase impossível. (…). É muito difícil você encontrar no Brasil [negros] que tenham atingido [uma situação igual à dos brancos em certos aspectos…]. Por quê? Porque o erro é de base. Porque depois que o Brasil fez seu festivo e retórico 13 de maio, quem cuidou da educação do negro? Quem cuidou de integrar esse negro liberto à sociedade brasileira? A Igreja? Era inteiramente ausente. A República? Nada. A nova expressão de poder econômico do Brasil, que sucedia ao poder patriarcal agrário, e que era a urbana industrial? De modo algum. De forma que nós estamos hoje, com descendentes de negros marginalizados, por nós próprios. Marginalizados na sua condição social. […]. Não há pura democracia no Brasil, nem racial, nem social, nem política, mas, repito, aqui existe muito mais aproximação a uma democracia racial do que em qualquer outra parte do mundo”.
E ao prefaciar a obra Religião e Relações Raciais, de René Ribeiro, Gilberto Freyre mais uma vez afirmou:
“Tão extremada é tal interpretação como a dos que pretendam colocar-me entre aqueles sociólogos ou antropólogos apenas líricos para quem não houve jamais entre os portugueses, nem há entre brasileiros, preconceito de raça sob nenhuma forma. O que venho sugerindo é ter sido quase sempre, e continuar a ser, esse preconceito mínimo entre portugueses — desde o contato dos mesmos como os negros e da política de assimilação, do Infante – e brasileiros, quando comparado com as outras formas cruas em vigor entre europeus e entre outros grupos. O que daria ao Brasil o direito de considerar-se avançada democracia étnica como a Suíça se considera — e é considerada — avançada democracia política, a despeito do fato, salientado já por mais de um observador, de haver entre os suíços não raros seguidores de (…) idéias políticas de antidemocracia”.
O fato de não haver se filiado à corrente maniqueísta esposada por alguns dos líderes negros talvez tenha custado muito caro ao sociólogo. Mas a verdade é que Freyre bem conhecia a realidade estadunidense, a tal ponto de não poder associá-la, nem aproximá-la, da realidade brasileira. Usualmente Freyre tecia considerações sobre as diferenças entre o sistema de segregação institucionalizada, operada nos Estados Unidos e o racismo praticado no Brasil. Nesses termos, afirmava:
“Não é que inexista preconceito de raça ou de cor conjugado com o preconceito de classes sociais no Brasil. Existe. Mas ninguém pensaria em ter Igrejas apenas para brancos. Nenhuma pessoa no Brasil pensaria em leis contra os casamentos inter-raciais. Ninguém pensaria em barrar pessoas de cor dos teatros ou áreas residenciais da cidade. Um espírito de fraternidade humana é mais forte entre os brasileiros que o preconceito de raça, cor, classe ou religião. É verdade que a igualdade racial não se tornou absoluta com a abolição da escravidão. (…). Houve preconceito racial entre os brasileiros dos engenhos, houve uma distância social entre o senhor e o escravo, entre os brancos e os negros (…). Mas poucos aristocratas brasileiros eram rígidos sobre a pureza racial, como era a maioria dos aristocratas anglo-americanos do Velho Sul”.
Segunda parte do artigo de Roberta Kaufmann sobre a importância de Gilberto Freyre p/ a construção da Nação Brasileira http://bit.ly/8dL239
sSobre a importância de Gilberto Freyre p/ a construção da Nação Brasileira PTE 2 http://bit.ly/8dL239
Uma parte dos portugueses nem mesmo eram totalmente brancos e europeus puros, eles sofreram certo grau interferência com a invasão dos árabes na península ibérica. Tendo certa miscigenação, esta mistura de raças já era mais “comum” aos olhos deles – diferentemente do resto da Europa -, por coisas assim as relações no Brasil foram decerto diferentes. Claro que não é o único fator, mas explica as relações dos portugueses com diferentes etnias.