São comuns reclamações sobre o IPCA, a medida oficial de inflação, em parte por desconhecimento do que ele mede, em parte por dificuldades envolvidas na própria construção do índice.
No que se refere ao primeiro tema, há uma confusão permanente que, de maneira geral, se reflete na pergunta: “Como dizem que a inflação está em queda se estive ontem na feira/supermercado/padaria e os preços estavam mais altos?”
A confusão, no caso, se refere à própria definição de inflação, que normalmente é expressa como um (a) aumento (b) persistente do (c) nível geral de preços.
A primeira parte da definição distingue preços altos de preços em elevação. Se os preços subiram 10% em dado ano e 5% no ano seguinte, é correto dizer que a inflação caiu, embora os preços tenham ainda aumentado: apenas aumentaram menos do que no ano anterior.
O segundo componente requer que o aumento seja persistente, o que tem sido o caso brasileiro há décadas (embora a inflação, repitamos, tenha caído nos últimos anos – e nas últimas décadas também!).
Ou seja, se todos os preços subirem em determinado período (um mês, digamos) e ficarem parados daí em diante, não seria considerado inflação, embora, deixemos claro, na prática não me lembro de nada remotamente parecido.
O terceiro componente se refere ao “nível geral de preços”, definição – como ocorre frequentemente em economia – bem mais fácil em teoria do que na prática. O IPCA, por exemplo, acompanha 377 produtos (bens e serviços), alguns dos quais sobem e outros caem num dado período.
O número divulgado como a variação do nível geral de preços de um certo mês é na verdade uma média ponderada das variações de preços dos 377 produtos do IPCA, sendo o peso de cada um desses produtos fruto de uma pesquisa (Pesquisa de Orçamentos Familiares – POF) realizada periodicamente pelo IBGE, de forma a atualizar o perfil de consumo das famílias brasileiras cujo rendimento vai de 1 a 40 salários mínimos, isto é, pessoas muito diferentes.
Obviamente, nenhuma família em particular é perfeitamente retratada pela POF e exatamente por este motivo a inflação divulgada pelo IBGE não é a inflação de cada família, mas da média das famílias.
Esse problema foi agravado durante a epidemia. Vários dos produtos (ou grupos de produtos) incluídos na POF não foram consumidos pela maior parte das pessoas ao longo de 2020. Exemplos abundam: alimentação fora do domicílio (bares e restaurantes), serviços pessoais (costura, manicure, barbearia etc.), transporte aéreo, cinema, casa noturna, sem, é claro, esgotar a lista.
No caso de alguns desses produtos, como passagem aérea, houve queda expressiva de preços (quase 60% de janeiro a agosto), mas a verdade é que praticamente ninguém se beneficiou disso, já que poucos viajaram durante a epidemia (eu, por exemplo, não entro num avião nem carregado!)
Nesse sentido, o IPCA perdeu um tanto da sua capacidade de medir a evolução do “custo de vida” das pessoas, ponto já levantado por outros economistas (se a memória me serve, o primeiro que vi foi Eduardo Zilberman, da PUC-RJ).
Reestimei, assim, o IPCA levando em conta esse fenômeno, retirando do índice bens e serviços pouco (ou nada) consumidos durante a pandemia. O resultado me deixou com um conjunto de produtos cujos pesos equivalem a cerca de 75% do peso original do IPCA, devidamente recalculados para que o novo total somasse 100%.
Com a nova estrutura de pesos, é possível estimar (ainda que de forma imperfeita) a “inflação” da Covid, índice que denominei IPCA-C. Os resultados estão resumidos na tabela abaixo.
Como se vê, de março a julho, o IPCA-C superou consistentemente o IPCA, isto é, a inflação sentida (em média) pelas famílias no período mais agudo da epidemia foi mais alta do que a calculada pelo IBGE, acumulando 1,33% nesses seis meses contra 0,24%, diferença de mais de um ponto percentual.
O padrão se inverteu em setembro e outubro, de modo que, nos dez primeiros meses do ano, como mostrado acima, a diferença ficou um tanto menor: 0,51% (2,74% medido pelo IPCA-C e 2,22% pelo IPCA).
Não se trata, quero deixar claro, de crítica ao trabalho do IBGE, que segue com cuidado a metodologia para a estimativa da inflação, mas do uso desses dados para compreender melhor o impacto econômico da epidemia sobre a população.
No que diz respeito ao Banco Central, mesmo considerando o IPCA-C, a inflação ainda deve ficar abaixo da meta para o ano (4%).
Dito isso, como notado brevemente acima, o padrão parece ter se invertido nos dois últimos meses (a amostra, porém, é reduzidíssima), já que o IPCA-C ficou abaixo do IPCA em setembro e outubro, apesar da forte alta da alimentação no domicílio, cujo peso no IPCA-C (em torno de 18,5%) é mais alto do que no IPCA (perto de 14,5%).
Isso revela que os preços ausentes do IPCA-C (dos produtos em tese não-consumidos durante a epidemia) subiram mais fortemente no período mais recente.
Esse movimento, contudo, até agora me parece mais um realinhamento de preços depois de superada a fase mais aguda da crise sanitária (sigo, porém, preocupado com o aumento das infecções nos últimos dias) do que uma pressão inflacionária que, para recuperar o tema do início da coluna, seja persistente e generalizada, pelo menos não por ora.
A combinação de desemprego elevado com expectativas de inflação ao redor da meta no horizonte relevante (2021 e 2022) deve manter a inflação ainda controlada ao longo do ano que vem. A principal ameaça segue vindo do lado fiscal, dada a ausência de medidas para recolocar a dívida em trajetória sustentável.
Se nada fizermos, em algum momento, hoje difícil de precisar, não poderemos mais contar com as expectativas ancoradas, como ocorreu em 2015 e boa parte de 2016. Caso cheguemos a isso, mesmo com desemprego elevado, o risco inflacionário irá ressurgir.
Fonte: “Infomoney”, 18/11/2020
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