Está entre os maus hábitos permanentes do Brasil a ilusão de achar que é possível conviver, sem maiores prejuízos, com a combinação com a qual tem convivido até hoje – uma geleia geral que junta a incompetência da máquina pública na execução dos seus deveres, a indiferença de um eleitorado sem interesse, paciência ou informação para acompanhar o que os políticos fazem com o seu dinheiro e os vícios de um sistema político que está entre os piores do mundo. O sentimento da maioria é que não compensa esquentar a cabeça com esse vale de lágrimas, quando o dia a dia tem assuntos mais urgentes para o cidadão resolver. Mas o pouco-caso com a realidade, infelizmente, sempre cobra um preço alto. Não se trata de uma cobrança que vai ficar para o futuro, como frequentemente se imagina. O preço já está sendo pago há muito tempo, e tende a ficar cada vez mais alto. Basta ver tudo de que o Brasil de hoje precisa com urgência, e não tem – e tudo o que tem de sobra, e de que não precisa.
Há um bocado de esperança, diante dos avanços reais que o país tem feito, de que, com perseverança, paciência e uma atitude mental afirmativa, dá para ir tocando as coisas; um dia, lá na frente, o grosso dos problemas estará resolvido. Existem fatos de sobra para demonstrar que o Brasil, neste momento, está muito melhor do que já foi em qualquer outra época do passado. Está melhor em questões essenciais, não em aparências, e está melhor de verdade, não porque quem diz isso é a propaganda boçal dos governos – até porque boa parte desse progresso não foi feita pelas autoridades constituídas, mas apesar delas. O problema é outro. Podemos ter crescimento de 6% ao ano, reservas de 250 bilhões de dólares e mais uma promoção no rating das agências internacionais que avaliam nossa capacidade de pagar dívidas. Podemos entregar, como acaba de ocorrer, 25 milhões de declarações de renda à Receita Federal. Podemos nos firmar como a sétima ou a oitava maior economia do mundo. Podemos ter e ser mais uma porção de coisas, mas vamos continuar sendo um país subdesenvolvido enquanto se mantiver essa situação em que tão pouca gente, na população brasileira, tem acesso real a uma vida efetivamente melhor.
Basta pensar durante cinco minutos sobre certas realidades para constatar o disparate que é considerar o Brasil atual um país bem-sucedido, quando 50% da população, por exemplo, não é servida por rede de esgotos – e, principalmente, quando uma calamidade desse tamanho é tratada com a maior naturalidade do mundo pelos outros 50%, em especial os que têm a obrigação de resolver o problema. O assunto, na verdade, é visto como uma tremenda chatice. Nem poderia mesmo ser diferente, quando se verifica que ainda não apareceu, em toda a história política do Brasil, um único homem público bem-sucedido que tenha elegido como prioridade em sua carreira a luta por instalação e tratamento de esgotos. Só um débil mental seria capaz de agir assim; pela sabedoria política em vigor, obra que não se vê é obra que não existe. Estamos avançando, é claro. Em 510 anos já se conseguiu chegar à metade do caminho; um dia, se Deus quiser, todos estarão atendidos. Mas a única pergunta que interessa, nessa e em outras questões do mesmo tipo, é: quando? Para os quase 100 milhões de brasileiros que não têm esgoto, faz toda a diferença.
Não se trata de uma questão isolada. Recentemente, num artigo que es-creveu para VEJA, o professor Gustavo Ioschpe observou que só 25% da população brasileira alfabetizada está em condições de entender um texto como aquele. Não lidava, ali, com nenhum pon-to de trigonometria avançada; era apenas uma página de revista, escrita em português corrente e que deveria ser acessível a todos os que completaram os primeiros oito anos de escola. É uma excelente notícia para os políticos, a começar pelos que mandam no atual governo – vivem se gabando de que o “povão” não lê nada do que a imprensa escreve e, portanto, as críticas que recebem não têm efeito nenhum. Mas, para os 75% que não conseguem entender o artigo do professor Ioschpe, essa situação é um desastre. É para eles que estão reservados, no Brasil que cresce a 6% e tem “grau de investimento”, os empregos com trabalho mais pesado, os piores salários e, em vez de carreiras profissionais, ocupações sem futuro algum – isso quando conseguem emprego, num mercado em que competem em desvantagem cada vez maior.
Dá para ir levando assim, é claro. Mas, como informa o artigo que tão poucos brasileiros conseguem ler, não existe nenhum país desenvolvido no mundo com o abismo social do Brasil.
(“Veja” – 08/05/2010)
Muito bom artigo! O aspecto educação me parece o mais importante para “virar” este jogo. Educação e não instrução. Educação que começa no lar, sem transferir a responsabilidade dos pais para os professores. A pré-escola e o ensino fundamental, acho que seria este o ponto de partida. Agora veja o exemplo negativo. Passo diariamente defronte a uma escola municipal. Há um ponto de ônibus e um sinal, com acionamento feito pelo pedestre. As crianças e suas mães, pais, responsáveis descem do ônibus e são incapazes de acionar o sinal e atravessar na faixa. Quem irá educá-los, aos pais e aos filhos?