Luiz Fernando Pezão foi o quarto governador fluminense consecutivo a ir para a cadeia, acusado de desvios equivalentes a R$ 39 milhões. Pezão, diz a denúncia da Procuradoria-Geral da República, herdou e passou a operar por conta própria o esquema de propinas montado pelo ex-governador Sérgio Cabral no Rio de Janeiro. A descoberta inesgotável de maracutaias no estado não cessa de desafiar a criatividade de quem inventa nomes para as operações da Polícia Federal: Calicute, Mascate, Eficiência, Unfair Play, Ratatouille, Fratura Exposta, Pão Nosso, Jabuti, Câmbio Desligo — para não falar na mãe de todas, a onipresente e sempiterna Lava Jato. Fora os quatro governadores, a trama sem fim já levou à cadeia pelo menos dois ex-presidentes da Assembleia Legislativa e outros oito deputados, cinco conselheiros do Tribunal de Contas do Estado, sete secretários ou ex-secretários de governo, além de doleiros, empresários, operadores e, claro, a ex-primeira-dama Adriana Ancelmo. Nos 26 processos a que responde, até o fechamento desta coluna, Cabral já fora condenado em oito, com penas que somavam 183 anos, por ter embolsado pelo menos R$ 235 milhões.
Embora os esquemas do PT tenham movimentado mais dinheiro, Cabral se tornou o símbolo do corrupto ostentação. Nada de cobertura no Guarujá ou pedalinho com o nome dos netos. A exuberância e a cafonice dele tinham outro nível, descrito pelo jornalista Tom Cardoso em Se não fosse o Cabral, relato da ascensão e queda do menino do subúrbio de Cavalcante. Filho do célebre jornalista do Pasquim, criado entre sambistas e a esquerda festiva, Cabral encantou-se e refestelou-se com o poder, a ponto de virar símbolo da esbórnia sem noção dos políticos brasileiros. Estalava o dedo, e o bilionário Eike Batista liberava o jatinho para levar amigos (e a provável amante) a Trancoso (num episódio que resultou trágico). Helicópteros pagos com dinheiro público transportavam cachorros e babás à mansão à beira-mar em Mangaratiba. Paris, palco da constrangedora “farra dos guardanapos”, era um destino tão frequente quanto o shopping do bairro. Festas exorbitantes, vinhos, champanhes, vestidos e sapatos de grife — cuja sola vermelha Adriana fazia questão de exibir em selfies. Anéis, colares, alianças, pulseiras, pingentes e cordões avaliados em milhões de euros, dólares ou reais — só um par de brincos custou mais que todo o Orçamento anual do incendiado Museu Nacional.
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Enquanto o contribuinte financiava a nababo-breguice de Cabral e corriola, o estado do Rio de Janeiro ia à bancarrota, hipnotizado pelas promessas de resgate dos Anos Dourados, de reconquista dos morros do tráfico, da sorte grande na loteria do petróleo, dos planos mirabolantes de Eike, do clima ufanista da Copa do Mundo e da Olimpíada (solos férteis para a erva daninha da corrupção). Pois em 2016, enquanto Pezão passava por um tratamento de saúde, o vice Francisco Dornelles se viu obrigado a decretar calamidade pública antes dos jogos. Não havia dinheiro para honrar compromissos triviais. Ainda não há. A Secretaria do Tesouro deu ao Rio de Janeiro, entre todos os estados brasileiros, a nota mais baixa em capacidade de pagamento de sua dívida, estimada em 288% das receitas (a lei permite até 200%). As saídas do caixa superam as entradas em 9%. Gastos com pessoal estão acima de 70% da arrecadação, mais de dez pontos além do autorizado na Lei de Responsabilidade Fiscal. Depois de Cabral e quadrilha ilimitada, o Rio está, numa palavra, falido.
Não há, ao contrário do que Cardoso sugere nas entrelinhas, relação necessária entre as origens modestas de Cabral e Adriana e a gula desmedida, o encantamento bocó com que se atiraram ao dinheiro, ao status e ao poder. O mais preocupante é outro encantamento, pouco explorado no livro: o transe hipnótico que toma conta da população do Rio, a credulidade no destino glorioso, nos milagres da natureza, na sorte grande, na esperteza que tudo resolve num passe de mágica, qual um drone que vem do céu e extermina o crime e a corrupção.
Fonte: “Época”, 07/12/2018