Por Ives Gandra da Silva Martins, Antonio Claudio Mariz de Oliveira e Renato de Mello Jorge Silveira
Alguns temas recorrentemente voltam à discussão. Talvez a explicação para isso seja a ignorância sobre seus pormenores. Talvez seja má-fé. Ou talvez apenas uma vã tentativa de soluções miraculosas para tantos pontos.
Um dos temas caros à advocacia, e ao mundo jurídico em geral, diz respeito ao chamado Exame de Ordem. Criado no início dos anos 1970, sob a consideração de que a proliferação dos cursos jurídicos no Brasil estava a criar gerações não devidamente habilitadas para o ofício da advocacia, foi ele sendo aprimorado com o passar dos anos. Também foram aprimoradas as críticas a ele, havendo notícia de tentativas congressuais de sua eliminação. Agora, ao início de um novo governo federal, cerram-se novamente fileiras contra essa prova, afirmando-se, em nova proposta pelo fim do Exame de Ordem, da lavra do deputado José Medeiros, que o atual presidente da República já tivera projeto de lei contrário a ele, e essa seria a razão para mais uma tentativa de seu expurgo.
Algumas verdades e alguns esclarecimentos devem ser fornecidos. Em primeiro lugar, ninguém se forma advogado, tampouco existe escola ou faculdade de advocacia. O curso de Direito permite a quem se forma prestar alguns dos inúmeros concursos públicos, como são os casos da magistratura, do Ministério Público, dos delegados de carreira, da Defensoria Pública e também o da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Portanto, não existe, e já há quase 50 anos, um direito preconcebido de se formar e automaticamente advogar. A Constituição da República coloca o parquet no mesmo nível da advocacia, como função essencial à administração da Justiça (artigos 127 a 133). O concurso público é fundamental para o ingresso no Ministério Público e na advocacia oficial (132). Por que não para advogar?
Portanto, o advogado exerce um múnus público, ligado ao conceito de cidadania. Nesse aspecto, equivocada a justificação do Projeto de Lei n.º 2426/2007, proposto pelo então deputado Jair Bolsonaro, que asseverava que o exame passou a existir somente após a Lei n.º 8.906/1994. E mais: a colocação de que somente o Ministério da Educação pode qualificar seus alunos também incide em erro, uma vez que, como se disse, não existem faculdades de advocacia, mas, sim, faculdades de Direito.
Hoje elas são mais de 1.700 no País. A qualidade de muitas é simplesmente sofrível e existe inegável risco para o Estado Democrático de Direito de simplesmente pretender autorizar a todos o exercício profissional.
É de lembrar que no início da década de 1950 a cidade de São Paulo ainda contava com uma única faculdade, fundada em 1827, tendo a Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP) sido criada em 1952 e a da Universidade Presbiteriana Mackenzie, em 1954. É interessante notar que considerou o imperador dom Pedro I tão relevante o estudo do Direito que as duas primeiras escolas universitárias foram as de Direito de São Paulo e Olinda. Hoje são dezenas as instituições que a cidade hospeda.
Os Estados Unidos têm menos de 300 faculdades, com quase o dobro de população! À evidência, estabelecimentos distantes dos centros do grande debate jurídico, dos tribunais, dos mestres de Direito mais conhecidos no País terminam por ter dificuldade em conseguir professores do mesmo nível dos grandes centros, com o que a formação, conforme a entidade, é necessariamente diferente.
Certa vez, um dos signatários do presente artigo, numa palestra com o então ministro da Educação no Centro de Extensão Universitária (CEU), lembrava que o médico cuida da vida de um paciente, mas o advogado, da liberdade, do patrimônio e da personalidade das pessoas. São funções tão relevantes que a Nação não pode permitir que a saúde e os direitos das pessoas sejam prejudicados por profissionais incompetentes. Daí a razão da importância de o ministério controlar a criação das faculdades, já à época em número excessivo, com o que concordou o titular da pasta, sem que tenha havido diminuição da criação de instituições de ensino do Direito.
O advogado não atua em nome próprio, mas de terceiro que o constitui. Existe, portanto, toda uma responsabilidade do Estado em assegurar um mínimo nível dos advogados.
A OAB não se beneficia de um controle de mercado criado pelo Exame de Ordem. Ao revés, sob o entendimento da entidade de classe, quanto maior seu espaço amostral, seu universo de base, maiores seriam as contribuições de seus entes. Logo, não haveria um interesse econômico na contenção do número de inscritos. Da mesma forma, aos olhos de seus dirigentes simplesmente não faz sentido um alegado temor em relação a uma preservação de mão de obra. Num país em que 80 milhões de processos estão em curso em seus diversos tribunais, onde só advogados podem atuar, não há que falar em preservação elitista dos que atualmente advogam.
Finalmente, é de ver que simplesmente se pretende a extinção de um procedimento que há quase 50 anos tem dado bons frutos, o que se mostra irracional. Não se pode também esquecer que os resultados dos Exames de Ordem têm levado outras profissões a sugerir sistemas semelhantes de controle.
Por fim, se compararmos o rigor da admissão nos Estados Unidos para que alguém possa advogar em algum Estado, verificaremos que é ainda maior do que no Brasil, apesar de que, pelo número menor de estabelecimentos de ensino, a qualidade média do bacharel que termina o curso é, necessariamente, melhor lá do que no nosso país.
Sobre a extinção do Exame de Ordem e a instauração de algo próximo de um programa “mais advogados”, estes totalmente sem controle ou regulamentação, tudo parece fora de propósito. A República não é mais dos bacharéis, mas estes ainda devem apresentar os rumos ideais do Direito.
Fonte: “O Estado de S. Paulo”, 23/03/2019