A prisão do ex-presidente Michel Temer, semana passada, suscitou um intenso debate entre os defensores do Estado de Direito, do Império da Lei e do devido processo legal e os justiceiros que, cansados de tanta impunidade, começam a admitir o justiçamento sumário de criminosos, principalmente de políticos e praticantes dos ditos crimes de colarinho branco, sem se dar conta de que confundem discricionariedade (liberdade que têm o juiz e outros agentes públicos de decidir e agir, porém sempre limitada pelo que a lei expressamente autoriza) com arbitrariedade (ação ou decisão acima ou ao arrepio da lei).
Antes de continuar, um parêntese necessário: ninguém aqui estará defendendo a inocência de Michel Temer – e eu acho mesmo que ele tem culpa no cartório. A questão é outra: o uso indevido de um instrumento jurídico excepcional e perigoso (a prisão preventiva), sem as devidas cautelas e amparo legal.
Segundo os princípios liberais mais básicos, mesmo os piores criminosos têm direito à presunção de inocência, ao contraditório e à legítima defesa, antes de serem considerados culpados. Isso é o mínimo que se exige num verdadeiro Estado de Direito. Pena que pouca gente se dê conta de conceitos e princípios tão comezinhos.
Num editorial excelente, no dia seguinte à prisão, o jornal Estado de São Paulo resumiu a questão de forma brilhante: “A possibilidade de que um juiz determine a prisão de uma pessoa simplesmente porque esse é seu desejo agride frontalmente o Estado Democrático de Direito. Em tese, esse risco não deveria existir no País, tendo em vista as garantias e liberdades asseguradas pela Constituição. No entanto, tal perigo não apenas existe, como vem se tornando assustadoramente frequente nos últimos anos. Magistrados têm decretado prisão preventiva sem que os requisitos legais estejam preenchidos, numa evidente configuração de abuso de poder. A lei processual é ignorada. Os fatos pouco importam. O que prevalece é o arbítrio do juiz.”
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No mesmo diapasão, o advogado Leonardo Corrêa foi enfático quando disse que “Uma ordem de prisão por autoridade incompetente, sem devido processo legal, sem contraditório e ampla defesa e desprezando, solenemente, o princípio da inocência é medida draconiana e totalitária. Faltante qualquer dos elementos acima –– salvo situações excepcionais tratadas, com enorme cuidado, pela lei ordinária, e interpretadas restritivamente –– revela tudo, menos o respeito ao Estado Democrático de Direito. (…) uma decisão como a que determinou a prisão do ex-presidente Michel Temer é a representação máxima de um Estado Policialesco, imponderado, açodado e capaz de violência acachapante contra o indivíduo. E, não fosse só isso, baseando tudo em suposições.”
“No nosso ordenamento jurídico”, como muito bem colocado pelo cientista político Matheus Leone, “a prisão é a medida mais gravosa. A prisão preventiva – que aliás não tem prazo – é a mais gravosa das medidas cautelares previstas no Código de Processo Penal, por se tratar da restrição da liberdade. Sim, liberdade. Lembram-se dela? Pois é. As garantias e direitos constitucionais são previstos não apenas para ficarem bonitos no papel. Há um sentido ali, que é a proteção dos indivíduos contra abusos estatais.”
O ex-ministro do STF, Carlos Velloso, também veio em socorro da legalidade, ao criticar a decisão de Bretas: “Não há condenação, trata-se de prisão cautelar. Acautelando o quê exatamente? Temer é ameaça à ordem pública? Cria obstáculos à investigação criminal? Traz riscos à ordem constitucional? Ameaçou testemunhas? Recusou-se a prestar esclarecimentos?” Segundo ele, “essa prisão retrata um furor punitivo inaceitável ao Estado de Direito, inaceitável à ordem constitucional.”
Na tentativa de suprir a ausência dos requisitos legais para a prisão preventiva, a decisão do juiz Bretas é pródiga em condenar a gravidade dos supostos crimes, numa peça de retórica que mais parece uma sentença condenatória – antes mesmo da denúncia ser protocolada pelo Ministério Público – do que um arrazoado justificativo dos pressupostos da prisão preventiva dos acusados.
A corrupção e demais crimes do colarinho branco, como ademais qualquer crime, devem ser combatidos sem trégua, evidentemente, mas isso não quer dizer que os agentes do Estado devam agir como os criminosos, ao arrepio da lei. O Estado de Direito e o Império da Lei não são apenas figuras de retórica em sociedades liberais, mas princípios gerais consagrados, sobre os quais não se deve transigir.
Como explica o jurista norte americano Richard Epstein, num estado de direito, o Império da Lei exige que todas as disputas – não importa se entre particulares ou entre partes pública e privada – sejam julgados por juízes neutros, ao abrigo de regras conhecidas antecipadamente. Cada parte deve ter conhecimento prévio da acusação contra ela e a oportunidade de ser ouvida em resposta. Além disso, cada regra deve ser compatível com todos as outras, de modo que nenhuma pessoa seja obrigada a violar uma norma legal a fim de satisfazer uma outra. Nos países desenvolvidos, o respeito a esses princípios tem tornado a economia mais forte e os cidadãos mais livres.
Não por acaso, os poucos liberais que se atreveram a colocar-se contra a prisão arbitrária do ex-presidente foram devidamente linchados pela sanha persecutória dos caçadores de troféus. Em suas diatribes contra os “garantistas” – alcunha com a qual gostam de nos atacar – chegam ao cúmulo de dizer: “É por isso que os liberais nunca vencerão eleições. Não sabem interpretar a vontade da maioria”. Ora, princípios são objetivos e não dá para relativizá-los, mesmo que isso importe em ficar contra a maioria – o que, no caso dos liberais, é a regra, não a exceção, diga-se de passagem. Ademais, justiça que é refém da vontade ou da opinião popular, não é digna desse nome.
Justiça (com J maiúsculo) é algo muito diferente de tribunais revolucionários. Condenação criminal sumária, sem o devido processo legal é a exata antítese do devido processo legal e do estado de Direito. Não sei quanto a vocês, mas eu não quero viver num país onde um juiz qualquer tem o poder de me retirar a liberdade, sem que seja em flagrante delito ou depois do devido processo legal, como aliás prevê a Constituição Federal no artigo que trata dos direitos e garantias individuais.