Em “A Sociedade de Confiança”, Alain Peyrefitte faz uma fundamental distinção entre sociedades temerosas, que assumem a vida como um jogo de resultado nulo ou mesmo negativo, e sociedades de confiança. Nas primeiras, prevalece a visão de luta de classes, a xenofobia, a inveja, o fechamento, a agressividade. Nas últimas, predomina a solidariedade, a abertura, o intercâmbio. Somente estas se desenvolvem, expandindo-se e vencendo os obstáculos naturais da desnutrição, doenças, violência endêmicas. Nesse contexto, Peyrefitte trata do tabu da usura, lembrando que durante muitos séculos o aluguel do dinheiro foi visto como algo absurdo, uma exploração pecaminosa. Era um reflexo claro de uma sociedade de desconfiança total. E são justamente as mentalidades que representam o motor essencial do desenvolvimento – ou um obstáculo intransponível. Derrubar este tabu era, portanto, crucial para o estabelecimento de sociedades de confiança e, por conseqüência, desenvolvidas.
Uma questão de mentalidade
Como não poderia deixar de ser, Peyrefitte foca bastante no papel da Igreja medieval como resistência ao progresso econômico, condenando a usura como pecado. Para ele, “as afinidades comportamentais e institucionais entre catolicidade e atraso econômico são inegáveis: dogmatismo, telecomando, resistência à inovação, desconfiança ante a difusão de uma cultura individual, obscurantismo, recusa da modernidade”, etc. Até mesmo o riso chegou a ser reprimido pela Igreja. Mas a ação mais nefasta ao progresso foi mesmo a condenação ao empréstimo de dinheiro. Raramente um comerciante poderia agradar a Deus, segundo as crenças religiosas da época. O lucro era visto como exploração, devendo representar o prejuízo de outro. Essa mentalidade estaria mais forte que nunca no marxismo onde no lugar de parceiros comerciais há adversários, e a relação econômica é um antagonismo, não uma sinergia. O empréstimo remunerado era visto com repulsa, e essa visão não era monopólio da Igreja, pois está presente na Bíblia, no Alcorão e até em Política, de Aristóteles. Para o autor, o obstáculo situava-se mais nas mentalidades do que na Igreja. Era preciso mudar as mentalidades.
Dinheiro: um meio de empreendimento
Foi então que surgiu Calvino, a quem Peyrefitte considera “o primeiro a reinterpretar a Bíblia, afirmando que a lei divina não proíbe a usura”. O emprego de capital tem preço, e o empréstimo é um serviço prestado. O dinheiro não é estéril, como afirmava a mentalidade predominante. O próprio dinheiro passa a ser visto como mercadoria também, sendo, portanto, produtivo. O dinheiro não é mais apenas um instrumento de troca, mas um meio de empreendimento. É preciso suprimir o dinheiro ocioso. Além disso, Calvino incentiva a independência espiritual dos indivíduos, assim como sua disciplina voluntária. Para Peyrefitte, “o calvinismo é uma ética da comunicação, da troca, do desenvolvimento das capacidades – da frutificação dos talentos”. Esse traço fundamental é que explicaria, segundo Peyrefitte, a aceleração que o calvinismo provoca na atividade econômica, financeira e comercial onde é bem recebido. Isso seria bem mais importante do que a “dupla predestinação” ou a “iniciação”, que Max Weber teria focado.
Com Calvino, acabou-se a maldição intrínseca das riquezas. Somente seu abuso e sua má utilização podem prejudicar. Através de Calvino fica mais claro que a vocação natural do homem conduz ao intercâmbio, ao consumo, ao desenvolvimento. O livre uso dos bens não se destina unicamente às necessidades, mas também ao prazer e divertimento. O sucesso pessoal, a prosperidade, passam a ser assumidos em confiança, como próprios do homem. Conforme resume Peyrefitte, “Calvino deslocou a mentalidade econômica da divisão das riquezas em direção à criação de riquezas”. A economia não é um jogo de soma zero, onde para alguém ganhar outro deve perder.
Empréstimo a juros: bode expiatório do tabu do dinheiro
No entanto, parece evidente que tamanha revolução mental não ficaria imune de ataques. Justamente porque a Reforma calvinista reabilita o empréstimo a juros, tão essencial para o desenvolvimento, a Igreja católica endurece e parte para a ofensiva com sua Contra-Reforma. Na França, em 1579, o decreto de Blois estabelece inibições e proibições a todas as pessoas, de qualquer estado, sexo ou condição, de praticar usura ou emprestar dinheiro com lucro e juros. Este artigo, confirmado por uma regulamentação de 1629, permaneceu em vigor até 1789, ou seja, por mais de dois séculos! A hostilidade intransigente contra a usura era fruto de um preconceito bastante enraizado nas pessoas. Segundo Jeremy Bentham, o empréstimo a juros foi o bode expiatório do tabu do dinheiro. Os judeus foram muito perseguidos, em boa parte, por assumirem a mesma função expiatória. Como o dinheiro é ao mesmo tempo amaldiçoado e cobiçado, deixa-se os bodes expiatórios ganharem dinheiro, e depois apodera-se dele sempre que necessário, pela força. Mas aqueles que fazem o dinheiro acabam vítimas da desonra.
Confiança: peça-chave para o desenvolvimento
Conforme Peyrefitte desenvolve em seu livro, os pilares do progresso passam pela liberdade individual, criatividade, responsabilidade. A confiança no indivíduo é peça-chave para o desenvolvimento. Faz-se necessário confiar na confiança. Isso pressupõe uma sociedade aberta, disposta a trocas voluntárias, receptiva de novidades. Entre as várias barreiras que são erguidas contra isso tudo, o tabu da usura é um dos mais relevantes. Sem a liberdade e confiança nas trocas, inclusive entre credores e devedores, não há avanço econômico sustentável. E apesar do tempo decorrido desde Calvino e outros pensadores que atacaram esta questão, muitos ainda se agarram nesta mentalidade retrógrada, desconfiando do livre comércio, condenando a globalização, os bancos, os credores de forma geral. Essas pessoas ainda estão presas no dogmatismo, na visão errônea de mundo, onde predomina a desconfiança, onde o ganho de um é visto como perda do outro. Nenhuma sociedade consegue realmente se desenvolver sem derrubar este tabu.
Por Rodrigo Constantino
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