Períodos nos quais problemas novos atordoam uma ordem que parecia eterna trazem um drama peculiar à consciência conservadora: fundada numa noção de ordem, começa a faltar-lhe o chão com o advento de alternativas de ruptura. Lidar com isso sempre é difícil – mas o mecanismo conservador é mesmo peculiar.
Francisco de Paula Rodrigues Alves sempre me pareceu um caso ilustrativo da capacidade de “conservar mudando”. Por toda sua formação, na segunda metade do século 19, foi tropeçando com gente que iria interpretar o tempo como sendo de mudanças necessárias. Joaquim Nabuco foi seu colega no Colégio Pedro II; Rui Barbosa e Castro Alves, contemporâneos na Faculdade de Direito de São Paulo.
Os três teriam sua memória ligada ao abolicionismo. Enquanto isso, Rodrigues Alves se abancaria nas hostes do Partido Conservador. Filho de um comerciante nascido em Portugal, casado com uma neta do mais rico dos comerciantes/fazendeiros do Vale do Paraíba, o Visconde de Guaratinguetá, pôde estruturar solidamente sua carreira política.
Em 1884 candidatou-se a Deputado Geral (assim eram chamados os parlamentares nacionais no tempo do império). Organizado, ia guardando em seus arquivos as correspondências com os que estavam apoiando sua candidatura. Uma das cartas veio de Laurindo de Almeida, morador na vizinha vila de Bananal. Ele expressava com grande clareza o que via como Ordem, as ameaças a ela – e o papel de um deputado que era do agronegócio na manutenção de tudo isso:
“V. Exa., chefe distinto, tem a particularidade de ser fazendeiro, e portanto deve tomar a peito na Assembleia a causa da lavoura, defender nossa honra, vida e propriedade que este fraco e desalmado governo deixa à mercê da canalha petroleira e comunista do Rio de Janeiro, que tenta nos colocar fora da lei. Estamos sendo sacrificados inermes e estupefatos”.
Todos os termos tinham significado próprio na época. “Causa da lavoura” vinha a ser a defesa da escravidão. “Honra” era fundada na condição de senhor, de pessoa superior, de comandante de cativos e dependentes. “Fraco e desalmado governo” vinha a ser o gabinete Saraiva, que estava tentando votar uma lei tornando livres os escravos com mais de 65 anos (num tempo em que a expectativa de vida andava por volta dos 40 anos de idade). Como naqueles idos o emprego de combustíveis fósseis apenas engatinhava, “canalha petroleira” era um apodo para a cor da pele de certos militantes. Da mesma forma, “comunistas” é uma referência muito anterior ao tempo em que o vocábulo designaria adeptos de regimes de governo existentes.
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Mas o constante apelo a adjetivos fortes vinha acompanhado de uma clareza meridiana quanto ao substantivo: a honra dos proprietários de escravos conservadores estava mesmo sob ataque direto de pessoas que buscavam colocar fora da lei o título de propriedade dos cativos. Sacrificar um instrumento jurídico perfeito de propriedade. Tornar inermes os valores centrais da Ordem existente.
Eleito para defender esses interesses Rodrigues Alves mudou-se para o Rio de Janeiro. Alugou uma casa na rua do Paissandu, no Flamengo. A escolha tinha um quê de simbólico. O espaço da Ordem, para os conservadores, era o Palácio da Quinta da Boa Vista, em São Cristóvão. Toda espécie de interessados no brilho da monarquia acostumara-se a migrar até lá e suplicar ou sussurrar perante o trono.
Mas o esplendor já não era o mesmo perante os jovens. Por essas épocas um deles, o pintor Antônio Parreiras, foi lá convidar d. Pedro II para a inauguração de uma de suas primeiras exposições. Deixou as seguintes lembranças em suas memórias:
“Tudo em São Cristóvão era velho, desmanchava-se com a seda das cortinas, a libré surrada dos criados, móveis burgueses já muito usados”.
A casa de Rodrigues Alves ficava próxima do Palácio das Laranjeiras, mandado construir recentemente pela Princesa Isabel. Ali tudo era novo, dos móveis aos costumes. No lugar da etiqueta da Corte seguia-se aquela dos salões burgueses de Paris: casa aberta para a elite social, discussões literárias e políticas.
Cada parte a seu modo enfrentava a maré montante do abolicionismo como podia. Assim que Rodrigues Alves chegou um ato que fez furor em São Cristóvão: no dia 14 de março, aniversário da imperatriz Teresa Cristina, um conselheiro imperial mostrou um Livro de Ouro. Nele os convidados deveriam assentar as quantias que dariam para comprar alforria de escravos. O sempre irônico historiador Pedro Calmon comentou: “[O imperador] não podia aliar-se ao comício. Aderiu à festa e inaugurou a série com um donativo de 60 contos de réis”.
Três meses depois a Princesa Isabel foi adiante na etiqueta real do abolicionismo. No dia de seu aniversário, presente o “petroleiro” André Rebouças e com apoio do “comunista” Joaquim Nabuco, foi anunciado que aquele era um evento social abolicionista – e de novo até os conservadores mais atracados à “honra, vida e propriedade” coçaram os bolsos para favorecer aquilo que odiavam de coração.
Nesta toada inauguram-se as sessões parlamentares. A maioria dos eleitos era liberal (67 deputados), apesar do respeitável contingente conservador (55 eleitos). Mas a real novidade da legislatura era a presença de três parlamentares republicanos (Prudente de Moraes e Campos Salles, paulistas; Cesário Alvim, mineiro).
Era equilíbrio suficiente para manter as esperanças de todos. Entre os liberais estava Joaquim Nabuco, àquela altura bem mais um defensor da abolição que qualquer outra coisa. Os republicanos podiam fazer discursos pregando a extinção da monarquia num parlamento monárquico. Os conservadores podiam obstruir, desgastar, chicanear.
A campanha abolicionista deixou um pouco de lado a pressão das ruas para canalizar forças para seus adeptos parlamentares buscarem alternativas legais para seu objetivo. As discussões em torno da Lei dos Sexagenários eram fortes, mas contidas no ambiente de negociação da Câmara.
O jovem deputado Rodrigues Alves encontrou um modo curioso para manter a defesa do escravismo e não ficar marcado pela oposição ao movimento: só fazia discursos de cunho nitidamente local. Reclamava contra a prisão de correligionários em Guaratinguetá, os atos dos vereadores liberais de Lorena, fazia a defesa de um vereador conservador de Taubaté. Assim ganhou coragem para um ataque mais forte ao ministério, em seu primeiro discurso de maior envergadura:
“O governo liberal, que era abolicionista moderado, tornou-se abolicionista exaltado. Os governos imprudentes, quando saem das normas da legalidade e apelam para o tumulto das praças, criam situações imprevistas. A propaganda das ruas assusta, irrita, mas a do poder faz desaparecer a confiança na lei e na autoridade. A propaganda do poder está levando ao susto as classes agrícolas”.
Discursos como este faziam pouco eco no Palácio das Laranjeiras, mas estrondavam entre as velhas cortinas de São Cristóvão – até levar d. Pedro II a agir com o pensamento voltado para o eleitor de Bananal. Assim que uma primeira versão da lei foi aprovada, o imperador aceitou a demissão do gabinete com maioria e indicou o Barão de Cotegipe para substituí-lo.
A sessão na qual se apresentou ao Parlamento foi muito tumultuada. Cotegipe era um escravocrata acabado, cujo programa não escrito era exatamente a volta atrás, a tentativa de brecar o carro da mudança. Dissolveu o Parlamento, convocou eleições – e, como sempre acontecia, nomeou os funcionários públicos necessários para manipular os resultados. Uma maioria conservadora entusiasmada se formou.
Os ralos republicanos e o grosso dos liberais foram derrotados, entre ele Joaquim Nabuco. Sem a cadeira parlamentar, deixou de lado as negociações e foi para o debate intelectual. Escreveu um panfleto intitulado “O Erro do Imperador”, no qual era claro:
“Na véspera estava a emancipação no poder; no dia seguinte estava a escravidão. Este foi o primeiro, o fatal erro do imperador: o de arrepender-se, inutilizar a obra começada”
Havia mais, a seu ver. O que estava em jogo para os conservadores não era apenas a escravidão, mas o próprio fato de terem de se acostumar com um novo elemento que a popularidade do movimento abolicionista trazia:
“Cada vez que os parlamentares conservadores chegavam às janelas da Câmara e viam o povo no rua, diziam: ‘Aquilo não vale nada, é a canalha’. No entanto o nosso povo é um povo de pés no chão e em mangas de camisa, e não é um povo branco”.
Nabuco previu as consequências da tentativa de parar a obra no meio. Com o imperador fechando o espaço do Parlamento a abolição foi para as ruas – e com ela a Coroa. As manifestações abolicionistas se multiplicaram muito (agora com ofensas ao monarca) – e o reeleito deputado Rodrigues Alves foi convocado para a batalha.
Nomeado presidente da província de São Paulo, passou a ser a autoridade executiva que deveria impor tudo aquilo que seu eleitor de Bananal tinha como valores – e que agora era programa de governo. Chegara a hora de ele descobrir que, embora tudo se possa esperar de um governo em matéria de Ordem, muito pouco se pode fazer para modelar a sociedade a partir do governo, mesmo com o comando da força armada e de uma procuradoria para acusar judicialmente.
Em São Paulo, desde 1883 o abolicionismo era chefiado por Antônio Bento. Membro do Partido Conservador, antigo delegado de polícia, já tinha montado toda uma estrutura para incentivar fugas de escravos, uma rede armada de proteção para acompanha-los até Santos (incluía a fortaleza armada do Zanzalá, na Serra de Cubatão) e um grande quilombo para recebe-los, o do Jabaquara.
Assim que o novo gabinete assumiu os escravocratas locais sentiram-se confiantes o suficiente para organizar um ataque armado ao forte. Inocentes foram massacrados. O novo presidente de província nada conseguiu fazer – não apenas contra os atacantes, mas sobretudo para conter a revolta que se alastrou.
Suas cartas para o ministério são uma sucessão de relatos de vitórias armadas abolicionistas e impotência do governo. Primeiro uma revolta nas fazendas do Barão de Serra Negra; o governante escreve ao proprietário dizendo que nada pode fazer. Enquanto o Quilombo do Jabaquara vai crescendo (chegaria a reunir dez mil fugitivos), o máximo que o governo consegue é prender um colono italiano de Itu como “anarquista”.
A anarquia real da falta de instrumentos institucionais de negociação é que vai se estendendo. O exército se recusa a fazer o papel de capitão do mato – e o Barão de Cotegipe engole calado. O imperador, vendo a maionese desandar, viaja para a Europa.
Em São Paulo o Conselheiro Antônio Prado, líder maior do Partido Conservador, é o primeiro a reagir como realista. Abandona a defesa do ministério e adere ao abolicionismo. Junta suas tropas no apoio a um projeto de subvenção provincial à imigração – que o presidente da província assina antes de renunciar. Com a mudança de posição de Antônio Prado, cai o ministério.
Cabe à princesa Isabel a dura missão de fazer a obra avançar. Convoca João Alfredo para chefiar o gabinete. Em duas semanas tramita o projeto de abolição da escravatura. Entre aqueles que votaram a favor estava Rodrigues Alves. Um ano e meio depois estaria entre os conservadores que apoiariam a derrubada da própria monarquia.
Foi senador, ministro, governador de estado, presidente da república. Sempre respeitado pelos conservadores – pois, afinal, sempre pôde empregar o argumento realista. Em 1916, quando governava São Paulo pela terceira vez (e quase no momento de ganhar seu segundo mandato de presidente da república), disse num discurso:
“Há muitos anos coube-me a honra de governar a antiga província de São Paulo. Agitava-se a questão abolicionista e os chefes do Partido Conservador divergiram em como resolver o momentoso problema. Eu mesmo fui envolvido no movimento e dominado pela propaganda, concorrendo com meu voto para que fosse abolido o elemento servil”.
Enquanto para um proponente de mudanças como a abolicionista a adesão ao realismo é quase sempre vista como traição, um conservador realista pode aderir ao novo sem parecer que mudou. Fico me perguntando o que terá acontecido com o entusiasmado eleitor Laurindo de Almeida, morador da vila de Bananal…
Fonte: “Gazeta do Povo”, 06/05/2019