De passagem por Paris, pude acompanhar a grande manifestação de 1.º de maio, organizada pela CGT (a CUT francesa), e a 25.ª e a 26.ª contestações dos coletes amarelos (gilets jaunes) contra o presidente Emmanuel Macron e suas políticas econômicas.
A eleição presidencial de 2017 trouxe forte renovação na vida política da França. A vitória de Macron, contra o establishment e contra os extremos da direita e da esquerda, deu-lhe um mandato para reformar o país. Criou-se uma grande expectativa pelo anúncio de reformas muito semelhantes às da atual agenda brasileira. Reforma de relações trabalhistas, Previdência Social, tributária, educação, gasto público e mudanças na economia para melhorar a competitividade dos produtos franceses e reduzir os privilégios corporativos. A pergunta que se fazia era se Macron resistiria à CGT e à extrema esquerda.
A resistência às reformas, que incluiriam o fim de privilégios e vantagens acumuladas durante os muitos anos de governos socialistas, que determinaram a gradual perda de espaço econômico e comercial na Europa, ganhou, nos últimos meses, o apoio da classe média e dos mais pobres, afetados pela concentração de renda e pelo sentimento de exclusão dos ganhos trazidos pela globalização.
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O estopim para o início do movimento dos coletes amarelos, em 17 de novembro de 2018, que se vem repetindo há 26 sábados por toda a França, foi o aumento do preço do diesel, como taxa para o meio ambiente. O movimento alastrou-se como rebelião contra o governo nas áreas rurais do interior da França, nas principais cidades e na capital. A classe média, nos últimos anos, perdeu renda e passou a morar mais longe de seu trabalho, tendo de viajar de carro de 60 a 100 km por dia. O aumento do combustível e a redução do limite de velocidade foram a gota d’água para galvanizar, via redes sociais, de forma espontânea, grande número de manifestantes antissistema e apartidários. Posteriormente as manifestações se ampliaram com a incorporação de outros segmentos de descontentes (empobrecidos das periferias) e minorias violentas (black blocs), resultando em forte repressão policial.
Surpreendido, o governo Macron levou tempo para reagir ao movimento social mais sério e complexo desde as manifestações estudantis de maio de 1968. A França está acostumada a demonstrações teatrais e os manifestantes gostam de recordar imagens revolucionárias. Numa delas os coletes amarelos levaram uma guilhotina com um boneco representando o presidente francês. Ter-se-ia esquecido o presidente de que 48% dos eleitores votaram nos partidos de extrema esquerda e de direita?
A reação do governo foi a organização de 10.134 encontros com a participação de mais de 1,9 milhão de pessoas por toda a França, chamados de “grande debate” para abordar todas as reivindicações populares e as reformas propostas. O resultado dos encontros mostrou algumas áreas de consenso nacional, como a urgência de providências relacionadas à mudança do clima e a redução dos impostos, a descentralização do poder central, a melhoria dos serviços públicos e a desburocratização, com a redução do papel do Estado. Macron deu-se conta de que o estilo imperial, característica dos primeiros anos de seu governo, terá de ser ajustado para uma ação menos pessoal.
Adiadas em razão do incêndio da Catedral de Notre Dame, em 25 de abril, Macron finalmente anunciou um pacote de medidas em resposta aos coletes amarelos. Elas incluem, entre outras, a redução do Imposto de Renda, a vinculação das aposentadorias mais baixas à inflação, bônus de até mil euros para assalariados que ganham até 3.600 euros, reforma política, com a simplificação da convocação de referendos, redução do número de deputados e a limitação de seus mandatos. E ainda medidas na saúde e na educação, com o compromisso de não fechar nenhum hospital ou escola até 2022, maior descentralização política com maior autonomia para governantes eleitos regionalmente, com a correspondente diminuição do poder concentrado em Paris (a França é um Estado unitário e, portanto, não tem Estados nem governadores, como no Brasil). Em relação ao meio ambiente, foi anunciada a criação de um conselho de defesa ecológica constituído por 250 cidadãos que vão trabalhar por medidas ambientais concretas. Essas medidas visam claramente a atender às principais reivindicações por diminuírem as desigualdades, reverem o papel dos políticos e reduzirem o papel do Estado.
A voz do povo, no entanto, continuou a ser ouvida depois do anúncio das medidas. No 1.º de maio, como seria de esperar, 165 mil manifestantes foram às ruas e viram-se cenas de violência em todo o país. Cerca de 40 mil pessoas participaram em Paris, onde os coletes amarelos e os black blocs marginalizaram os sindicatos, uma importante constatação política. Nos sábados 4 e 11 de maio, as manifestações dos coletes amarelos foram mais tranquilas e menos numerosas, mas mostraram a Macron que o movimento continua.
O primeiro-ministro Édouard Philippe pretende lançar as reformas anunciadas em clima de crise social, que persiste há seis meses. Resta saber se elas serão suficientes e se servirão para acalmar os ânimos dos mais pobres e descontentes.
A crise interna francesa enfraqueceu as ações externas de Macron. Forte defensor do fortalecimento da Europa, Macron vê a unidade europeia diminuir com a saída do Reino Unido da União Europeia, pela emergência de movimentos nacionalistas e populistas de direita em muitos países europeus e pela saída de cena da chanceler alemã Angela Merkel, sua principal parceira. O encontro Merkel-Macron, no último dia 30, para discutir a situação nos Bálcãs (Sérvia-Kosovo), está mais para canto do cisne que para o reaparecimento de Macron como ator relevante na cena internacional. No meio da enorme turbulência, a Europa carece de um nome forte para liderá-la.
Fonte: “Estadão”, 14/05/2019