Recordar é viver, retornar é um esforço. A rememória é mental e aparece envelopada em saudade; o retorno é concreto.
É feito com o corpo. Ora, quem nos engana pela vida afora é a mente, desenhada para narcisísticas idealizações; já o corpo, ligado as pulsões que tocam a vida, não engana. Você pode se convencer de que é capaz de correr a maratona ou cantar como o Sílvio Caldas, mas não tente fazê-lo. As profissões performativas põem a nu essa dialética de felizes autoengodos. Mentindo, a mente diz que pode; mas o corpo, que só pode falar a verdade, exige ajustes e esclarecimentos…
Recordar é um bálsamo que torna tudo grandioso; retornar é um lancinante encontro com ausências — tudo parece gasto e pequeno.
Mudanças feitas à nossa revelia e sem a nossa licença. Foi como me senti na semana passada quando voltei a Belém.
Nos anos 60 e 70, quando um programa de pesquisa etnológica me impunha visitas ao sertão do Rio Tocantins, Belém era o começo. De lá eu partia para Marabá ou Tocantinópolis e seguia para os povoados fora dos mapas de onde, finalmente, chegava nas aldeias indígenas.
Com poucos recursos para pesquisa, realizava “excursões”, jamais “expedições” — palavra que remetia aos filmes de Tarzan e às memoráveis “expedições científicas” de Karl Von den Stein, Rondon e Claude Lévi-Strauss.
Impossível a comparação com esses gigantes em cujos ombros eu mal me equilibrava, embora tivesse passado o que passaram: o risco de vida, a malária que me atacou na lua de mel, a fome crônica, a tenebrosa falta de latrinas, o que leva a pensamentos originais e enviesados sobre as origens da civilização; e a um obsceno medo de perder-se o que, vejo bem hoje, era uma fantasia de não achar o caminho de volta às plausibilidades do nosso mundo. Uma fantasia imposta aos que dele tentam evadir-se, nisso que é um dos aspectos mais avessos da antropologia cultural. Queríamos “apenas” estudar índios. Mas esse “apenas”, como a cidade de Belém começava a me ensinar, tinha implicações sacanas.
Uma delas é que estávamos sempre chegando ou partindo de Belém. Mais chegando do que fazendo como a música do grande Caymmi, pois não íamos “pro Rio morar”, mas — ao contrário e irracionalmente — abríamos mão da residência carioca para viver entre os índios. O “entre” cabendo melhor do que o “com” das associações intensas que, pelo menos no meu caso, jamais realmente aconteceu.
Mas eis que neste 26 de maio, chego a Belém do Pará e o motorista me mostra orgulhoso a “Estação das Docas”, conjunto de restaurantes ao longo do velho porto, construído pelo excêntrico milionário americano Percival Farquhar, no qual Vasco Moscoso de Aragão, o capitão de longo curso de Jorge Amado, atracou o seu navio com todas as amarras, livrando-o do afundamento pela realidade.
Ali, em 1962, desembarquei com o colega de trabalho e vida, Roque Laraia, e minha linda e então grávida esposa Celeste, do gaiola Percival Farquhar entupido de redes. Nossas cabeças e diários transbordantes de dados, mas sem um puto no bolso.
Fomos para o Museu Goeldi onde nos aboletamos em apartamentos destinados — a pátria sempre se salva! — a pesquisadores sem dinheiro e, famintos, corremos para um restaurante. Foi uma das muitas vezes que escolhi o prato pelos preços. Roque, com seu maravilhoso humor mineiro, remarcou o que sabíamos: era presságio.
De outra feita, escoteiro, fui levado por Isidoro Alves, aluno e pré-colega (eu jamais tive discípulos pois nunca fui mestre), a um espaço festivo — ao que hoje seria chamado uma “Estação do Sexo” — que tinha o poético nome de Pagode Chinês. Novamente sem dinheiro, tomamos umas poucas cervejas e invejosamente olhamos com desprezo os potentados locais cujo uísque atraía as pagodeiras. Virei a noite dançando romanticamente, mas juro que voltei ao Museu Goeldi voluntariamente empalhado pelo amor de minha mulher.
No Galeão, Celeste me conduziu para Niterói, onde um almoço festivo esperava este vosso Ulisses tropical.
No meio da ponte que era, então, transitável, dormi como um porco, somente para ser acordado por uma sacudidela suave de minha Penélope, que fez a seguinte observação: “A farra de ontem deve ter sido boa, não?” Estava certo de não estar mais em Belém.
Eis o que eu não sabia. Belém significa “casa da carne” (em árabe) e “casa do pão” para os hebreus. Os cristãos reinterpretam como o local onde nasceu o pão da vida e, diria eu, a carne do sacrifício amoroso pela humanidade.
A paixão pelas causas perdidas — amor, honestidade, igualdade, consciência do poder —, as únicas causas que merecem luta incessante.
Ao andar pelas ruas sombreadas pelas velhas mangueiras, vi aquela moça carregando o nosso primeiro filho no seu belo ventre. Ao seu lado, seguia eu orgulhoso, pensando no futuro.
Se soubesse que esse menino morreria subitamente aos 42 anos devido à destruição pelo governo Lula de uma companhia aérea, e que a moça iria ser atingida por uma doença incurável, o que teria feito? Tudo o que ocorreu e ainda vai ocorrer faz parte de um rico e misterioso fardo, mas que maravilha conhecer a graça de sobreviver a si mesmo, diz lá de dentro uma voz com a casualidade orgulhosa dos gladiadores. Foi assim, queridos leitores, que, mais uma vez, eu disse adeus a Belém do Pará.
One Comment