A juíza Pollyanna Kelly Alves, da 12ª Vara Federal de Brasília, determinou a quebra de sigilo telefônico do colunista Murilo Ramos, da revista “Época”. A medida foi tomada secretamente em 17 de agosto. O jornalista não é suspeito de nenhum crime. O objetivo da grave suspensão do direito constitucional do colunista é um só: tentar descobrir a identidade de uma das fontes do jornalista. Na sexta-feira, dia 7 de outubro, após tomar conhecimento do fato, a Associação Nacional de Editores de Revista, a Aner, impetrou habeas corpus, com pedido de liminar, em favor do jornalista. A defesa pede a suspensão imediata da decisão da juíza. O habeas corpus foi distribuído ao desembargador Ney Bello, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região.
A decisão da juíza foi provocada por representação do delegado da Polícia Federal João Quirino Florio. Ele contou com a anuência da procuradora da República no Distrito Federal Sara Moreira de Souza Leite. Em abril do ano passado, o delegado Quirino foi encarregado de investigar o vazamento a “Época” de um relatório do Conselho de Controle das Atividades Financeiras, o Coaf. Nele, os investigadores do Coaf listavam os brasileiros suspeitos de manter contas secretas na filial suíça do HSBC, no escândalo conhecido como SwissLeaks. A investigação do Coaf e o teor do relatório foram revelados por “Época” em fevereiro de 2015, em reportagem que contou com a apuração de Murilo Ramos.
Em 20 de abril deste ano, após afirmar que Receita, Coaf e Banco Central não haviam conseguido descobrir a origem do vazamento, o delegado João Quirino pediu à juíza que quebrasse o sigilo do colunista Murilo Ramos. Fez esse pedido antes mesmo de tomar formalmente o depoimento do colunista, segundo despacho obtido por “Época”. “A única maneira de chegar ao autor do crime, que é grave, pois poderia comprometer todo um sistema de segurança de informações vitais para o funcionamento de toda uma economia, seria o cruzamento de chamadas de Murilo nos dias que antecederam a entrevista que [sic] cruzá-lo com os telefones das pessoas que poderiam ter acesso aos dados”, escreveu o delegado à juíza Pollyanna Kelly.
Meses depois, em julho, o colunista de “Época” foi ouvido pela PF. Não sabia que o delegado já pedira a quebra de sigilo telefônico. Recusou-se a revelar a identidade de fontes envolvidas na produção da reportagem. Para isso, invocou, como sempre fazem jornalistas em casos semelhantes, o direito constitucional ao sigilo da fonte. Esse direito é previsto na Constituição brasileira e consagrado no ordenamento jurídico da maioria das democracias ocidentais. Tal proteção ao trabalho do jornalista está consolidada em leis e nas doutrinas legais pela simples razão de que, sem ela, a sociedade teria muito mais dificuldade para ter acesso a informações de interesse público. Entende-se, inclusive nos principais tratados assinados pelo Brasil, como o Pacto de San José da Costa Rica, que qualquer obstáculo à liberdade de imprensa configura-se um obstáculo ao próprio exercício da democracia.
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Não se trata de um direito controverso. O Supremo Tribunal Federal brasileiro tem posição pacificada sobre o assunto: não se pode violar o direito do jornalista de manter fontes em segredo. Escrevia, há 20 anos, o decano do Supremo, ministro Celso de Mello: “A proteção constitucional que confere ao jornalista o direito de não proceder à disclosure da fonte de informação ou de não revelar a pessoa de seu informante desautoriza qualquer medida tendente a pressionar ou a constranger o profissional da Imprensa a indicar a origem das informações a que teve acesso, eis que – não custa insistir os jornalistas, em tema de sigilo de fonte, não se expõem ao poder de indagação do Estado ou de seus agentes e não podem sofrer, por isso mesmo, em função do exercício dessa legítima prerrogativa constitucional, a imposição de qualquer sanção penal, civil ou administrativa”.
Tais princípios internacionais, consolidados no Direito brasileiro há décadas, foram ignorados pelo delegado João Quirino e, também, pela procuradora Sara Leite. Num despacho de três páginas, assinado no dia 3 de agosto, ela concorda com o delegado da PF. Assim como João Quirino, não argumenta por que o direito constitucional ao sigilo da fonte merece ser anulado, nesse caso, em prol da possível descoberta do autor do vazamento do relatório. “Verifica-se a razoabilidade e a necessidade da medida investigativa proposta, especialmente porque o jornalista, que poderia identificar a pessoa que lhe forneceu as informações sigilosas, recusou-se a fazê-lo, alegando o direito de preservar o sigilo da fonte”, escreveu a procuradora Sara Leite. Ela chega a argumentar que a entrega dos extratos telefônicos não configurariam quebra de sigilo telefônico, dado que não há interceptação do conteúdo das conversas em tempo real.
Diante do pedido do delegado e da concordância da procuradora, a juíza Pollyanna Kelly precisou de somente três páginas para decretar a quebra, semanas depois. “A medida pleiteada [a quebra do sigilo] mostra-se imprescindível para apurar os fatos noticiados”, disse a juíza. “Registro que a proteção constitucional ao resguardo das comunicações não se mostra absoluta diante do interesse público em esclarecer o suposto delito.” Ela determinou às operadoras que enviassem os extratos do colunista diretamente ao delegado.
No habeas corpus impetrado no dia 7 de outubro no Tribunal Regional Federal da 1ª região, a Aner pede a suspensão dos efeitos da decisão judicial que determinou a quebra do sigilo telefônico, o sobrestamento da tramitação do inquérito em curso perante a 12ª vara Federal da Seção Judiciária do Distrito Federal e a suspensão da quebra do sigilo telefônico. No caso de a operadora telefônica já ter fornecido as informações do sigilo telefônico à autoridade policial, a defesa solicita que elas venham a ser “absolutamente destruídas” até o julgamento final do HC.
Os advogados sustentam que a quebra do sigilo telefônico, que é uma medida cautelar extrema, traz para o jornalista “uma condição inequívoca de investigado, fato que traduz uma absoluta falta de justa causa, pois fere o sagrado direito constitucional inerente ao jornalista, que é a liberdade de expressão e o direito de informar”. Os advogados lembram, ainda, que o sigilo de fonte está assegurado pela Constituição Federal em seu Artigo 5º.
Em nota conjunta divulgada no dia 8 de outubro, a Aner, a Associação Nacional de Jornais (ANJ) e a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) criticaram a decisão da juíza. “A quebra do sigilo telefônico de um jornalista implica em gravíssima violação ao direito constitucional do sigilo da fonte e ao livre exercício da profissão de jornalista”, dizem as entidades no documento. “A ABERT, a ANER e a ANJ repudiam a decisão da juíza e reforçam que não há jornalismo e nem liberdade de imprensa sem sigilo da fonte, pressuposto para o pleno exercício do direito à informação.”
Tendência preocupante
O caso do colunista de ÉPOCA, infelizmente, não é inédito. Há dois precedentes recentes – e igualmente inconstitucionais. No mais grave deles, a PF indiciou um jornalista do “Diário da Região”, em São José do Rio Preto, interior de São Paulo. Também com apoio do Ministério Público, a polícia queria descobrir a identidade das fontes do repórter, que revelara o teor de uma investigação sigilosa sobre corrupção no município. A Justiça aceitou quebrar o sigilo telefônico do jornalista. Foi preciso que o jornal recorresse ao Supremo para anular a decisão.
Caso semelhante transcorreu no ano passado no Superior Tribunal de Justiça. O governador Fernando Pimentel (PT) pediu a quebra de sigilo telefônico de um jornalista – e voltou atrás. Seus advogados, Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, e Pierpaolo Bottini, solicitaram ao STJ a quebra de sigilo e o interrogatório de um repórter do jornal “O Globo”. Pimentel queria descobrir as fontes que vazaram ao veículo informações da investigação que corre contra ele na corte. O ministro Herman Benjamin, relator do caso no STJ, determinou que a PF investigasse, por igual razão, repórteres de “Época”. Diante da repercussão negativa, os advogados do governador desistiram da ação.
Em países como Estados Unidos, o sigilo constitucional ao sigilo da fonte é questionado, e ainda assim sob intensas críticas, somente quando a Segurança Nacional entra em jogo. Em 2015 por exemplo, a Suprema Corte dos Estados Unidos rejeitou apelo do repórter James Risen, do “New York Times”, duas vezes vencedor do Prêmio Pulitzer, para não ter de depor e revelar a identidade de uma fonte. Durante sete anos, Risen lutou para não ter de testemunhar no julgamento de Jeffrey Sterling, ex-agente da CIA, acusado pelo Departamento de Estado de passar a Risen informações sobre uma operação secreta do governo americano para sabotar o programa nuclear do Irã, exposta em um dos capítulos do livro “State of war”. Quando perdeu, Risen ficou sujeito à prisão, caso não colaborasse. Na investigação, o Departamento de Justiça obteve secretamente e-mails e registros telefônicos de contatos entre Sterling e Risen. Desde então, Risen afirma que, apesar da desistência, ao ir tão longe, o governo Obama arranhou a Primeira Emenda da Constituição americana.
Nos anos pós WikiLeaks e Edward Snowden, as autoridades estatais no mundo todo, mesmo em países de longa tradição democrática, parecem empenhadas em enfraquecer o já estabelecido, e mais que necessário, princípio do direito ao sigilo da fonte de jornalistas. Um estudo da Unesco de 2015 mostra que entre 2007 e 2014, nos mais de 100 países pesquisados, o direito a sigilo da fonte tinha sido sistematicamente atacado, ou por legislações referentes a segurança nacional e antiterrorismo ou sendo submetido a vigilância individual ou em massa e ainda colocado em risco pela retenção de dados obrigatória. “O marco legal que protege as fontes confidenciais de jornalistas internacionalmente é essencial para a publicação de informações de interesse público – informação que de outra maneira poderia nunca ser descoberta”, diz o documento.
Fonte: “Época”.
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