Como não lhe faltassem argumentos, a certa altura do voto decisivo contra a cassação da chapa vencedora nas eleições presidenciais de 2014, o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Gilmar Mendes, tirou da algibeira um personagem da nossa literatura infantil, Américo Pisca-Pisca. “De vez em quando a gente vê esse personagem andando por aí, o reformador da natureza”, disse. Na fábula de Monteiro Lobato, Pisca-Pisca punha defeito em tudo. Por que uma árvore grande como a jabuticabeira carrega frutos tão pequeninos? Por que abóboras enormes crescem ao chão, em frágeis plantas rasteiras? “Não era lógico que fosse o contrário?”, pergunta. “Se as coisas tivessem de ser reorganizadas por mim, eu trocaria as bolas – punha as jabuticabas na aboboreira e as abóboras na jabuticabeira.” Até que, “pisca-piscando que não acabava mais”, ele adormece sob a jabuticabeira, e uma jabuticaba cai-lhe sobre o nariz. Desperta, pisca, pisca de novo – e reflete: e se tivesse caído uma abóbora? “Deixemo-nos de reformas. Fique como está que está tudo muito bom”, diz. Para Gilmar, a fábula é um alerta para as tentativas de mudar o mundo sem atentar às consequências. “Muitas vezes, brincamos de Américo Pisca-Pisca, temos de ter muito cuidado com as instituições”, disse, ao votar pela manutenção do mandato do presidente Michel Temer. “Não devemos brincar de aprendizes de feiticeiro. Se quiserem tirar um presidente, não se aproveitem desse tipo de situação.”
Gilmar poderia ter prosseguido em sua leitura de Monteiro Lobato. Em “A reforma da natureza”, Dona Benta, Tia Nastácia, Pedrinho, Narizinho e o Visconde de Sabugosa se mandam para a Europa, convocados a negociar um acordo de paz entre as nações. Sozinha no Sítio do Picapau Amarelo, a espevitada Emília se mete a brincar de Pisca-Pisca. Convida uma amiga a ajudá-la a reformar os “bissurdos” que encontra na natureza. A experiência é um desastre. Um tico-tico com a ninhada nas costas mal consegue voar, laranjas sem casca não resistem nos pés, bezerros passam fome diante da vaca com torneiras nos úberes, livros comestíveis são devorados pelo porquinho Rabicó, borboletas lerdas, moscas sem asas, pernilongos, pulgas e percevejos sem peçonha, até mesmo o rinoceronte Quindim vira uma quimera sem chifre, com patas e caudas de outros animais – para não falar nas jabuticabas e abóboras. Ao voltar da Europa, Dona Benta, chocada, manda Emília desfazer as reinações. Mas nem todas. Deixa o leite assobiar para avisar que ferveu, aprova mudanças nos insetos e até que certos livros se tornem comida. “Há muita coisa aproveitável”, diz resignada a Emília. Pois aí a reforma da natureza não acaba. Emília e o Visconde se metem em experimentos glandulares que espalham pelo mundo insetos gigantescos. Para explicar a um cientista estrangeiro como tudo fora possível, ela se sai com a seguinte pérola: “Nosso segredo é o Faz de Conta. Não há o que não se consiga quando o processo aplicado é o Faz de Conta”.
Eis um princípio que descreve bem os artifícios retóricos de Gilmar e dos demais ministros responsáveis por absolver a chapa Dilma-Temer. Só no mundo do Faz de Conta processual tantos crimes resistem a tamanha abundância de provas. Basta fazer de conta que as empresas offshore dos marqueteiros de Dilma não receberam, em 2014, dinheiro desviado dos contratos de sondas da Petrobras. Ou que nem um centavo do dinheiro sujo destinado aos partidos vitoriosos pelas empreiteiras citadas na petição inicial foi usado na campanha. Ou, então, que nada disso tenha sido confirmado por depoimentos – não só de delatores premiados, não só de executivos da Odebrecht –, por comprovantes de depósito e por extratos bancários. Está tudo lá, provado de modo exaustivo, detalhado e sólido, resistente a qualquer dúvida ou objeção, no voto do relator, ministro Herman Benjamin.
Em sua comparação, Gilmar só esqueceu o essencial. As leis da natureza não podem ser reformadas, já as humanas… Jogue-se sobre elas um pouquinho do pó de pirlimpimpim da retórica e pronto! Jabuticabas brotam feito cogumelos dos troncos da Justiça, começam a desabar sobre a cabeça de todos nós, mais um pouquinho e se tornam abóboras a rachar qualquer resquício de vergonha ou princípio ético. Não que a preocupação de Gilmar com a estabilidade seja descabida. Não se pode mesmo trocar de presidente a toda hora. Mas o que gera mais instabilidade? Condenar um governante por crimes comprovados ou mantê-lo no poder apesar deles, só para evitar mudanças de resultado incerto? Cada um terá sua resposta. Gilmar fica com o conservadorismo da fábula de Pisca-Pisca. Emília, alter ego de Lobato, não se faz de rogada: “O fabulista era um grande medroso; queria fazer uma fábula que desse razão ao seu medo de mudar”. Diante do julgamento do TSE, ainda completaria: “Bissurdo!”.
Fonte: “Época”, 18/06/2017.
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