O país experimentou na década passada um ciclo de inédita estabilidade com a aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal em 2000, que pôs fim a décadas de frequentes e graves crises fiscais. Muito dos importantes avanços, no entanto, foram revertidos nos últimos anos.
A política fiscal é o elo mais fraco da política econômica, em função de sua maior vulnerabilidade a pressões de grupos de interesse. Ao contrário do banco central, não é possível conceder efetiva autonomia à autoridade fiscal para blindá-la de pressões políticas, afinal, governar implica abrir o cofre do tesouro. Mas dada a missão do Estado de garantir o bem comum, é necessário estabelecer instrumentos que disciplinem a política fiscal. Esse é o espírito da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Há mais exemplos na experiência mundial, como autonomia dos órgão de arrecadação, instrumentos de proteção ao tesouro e, mais recentemente, a criação de instituições independentes de controle.
O princípios norteadores da LRF são a definição de regras que disciplinem a ação da autoridade fiscal, garantindo a adequada prestação de contas (accountability) e o cumprimento das leis e procedimentos orçamentários (enforcement). Neste último caso, até houve algum avanço, mas há muito ainda a ser feito. Para o bom funcionamento da economia, metas fiscais devem ser estabelecidas e cumpridas. As transgressões devem ser adequadamente punidas.
O país precisa de instrumentos para garantir a transparência necessária à deliberação democrática e para evitar excessos que desviem a política fiscal de sua função anticíclica, ameacem a solvência da dívida e, de quebra, influenciem de forma desleal o desempenho do incumbente nas urnas.
Nos últimos anos, houve retrocesso econômico e institucional no Brasil. O governo promoveu a indisciplina fiscal e fez uso de instrumentos que obscurecem a real situação das contas públicas. Aquilo que já vinha em um crescendo acentuou-se em 2014, ano de eleição, a despeito de alertas, não apenas de analistas, mas do corpo técnico da Fazenda, já no início de 2013, conforme recentemente revelado pela imprensa.
O ciclo político influenciar a gestão da política fiscal não é novidade. O que distingue 2014 foram os repetidos descumprimentos à LRF. Não se trata apenas de grau de utilização da política fiscal. Foi algo mais grave, um misto de irresponsabilidade e negligência.
Em fevereiro de 2014 o governo anunciou meta de superávit primário 1,9% do PIB. A meta era desafiadora e exigia esforço fiscal, que o governo prometia entregar. Contrariando o prometido, a política fiscal seguiu ainda mais expansionista.
Pela LRF, o governo deveria ter feito contingenciamento de despesas discricionárias (ou não obrigatórias) para cumprir a meta ao longo do ano, diante da frustração com receitas. Já no primeiro trimestre de 2014 isso já estava claro. Não só o contingenciamento não foi feito, como houve expressiva expansão fiscal. Os gastos discricionários subiram quase 18% em 2014 (ou R$39 bilhões) em relação a 2013. Políticas públicas foram ampliadas e estendidas, quando o momento pedia austeridade.
Do lado das receitas, as renúncias tributárias criadas no governo Dilma aumentaram 36% (ou R$27 bilhões), inclusive com aumento considerável nos setores contemplados pela desoneração da folha salarial, quando o momento seria de rever medidas do passado que fizeram as renúncias tributárias totais saltarem de 3,6% do PIB em 2010 para 4,9% em 2014.
O desfecho dessa história é conhecido. A meta fiscal foi alterada no apagar das luzes de 2014 e o governo registrou déficit primário de 0,59% do PIB.
Alguns excessos fiscais não são diretamente observados. Há itens não contabilizados no resultado do Tesouro que tiveram expressivo aumento ao longo do primeiro mandato de Dilma, particularmente em 2014, conforme apresentado abaixo.
Os restos a pagar processados (não contabilizados no resultado do Tesouro), que são aqueles decorrentes de gastos realizados mas não pagos, cresceram 14% sobre 2013 (ou R$4,8 bilhões).
As chamadas “pedaladas” (não contabilizadas nos restos a pagar), que se referem à não transferência de recursos de programas sociais aos bancos responsáveis pelo seu repasse a indivíduos, explodiram. É uma espécie de cheque especial junto aos bancos públicos, o que fere a LRF segundo o TCU, e não guarda relação com atrasos temporários nos repasses que ocorrem eventualmente. Os bancos públicos se transformaram em credores do Tesouro, sendo que deveriam ser meros repassadores de recursos. As “pedaladas”, que começaram a partir do segundo semestre de 2013, atingiram R$40 bilhões em 2014.
O crédito estudantil cresceu de forma expressiva. O FIES – Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior, criado em 2001, teve uma explosão de contratos após mudanças promovidas em 2010. Foram R$13,8 bilhões em 2014, com crescimento de 79% em relação a 2013 (ou R$6 bilhões).
Os empréstimos do Tesouro a bancos públicos, que começaram a subir a partir de 2008 (representavam 1,4% do PIB), aumentaram ainda mais na gestão Dilma, saltando para 10% do PIB em 2014. Crescimento expressivo sobre base já bastante elevada, inflando a concessão de crédito de bancos públicos.
Avais do Tesouro Nacional a empréstimos concedidos para entes subnacionais também aceleraram. Foram autorizados R$146 bilhões em novos financiamentos no primeiro mandato de Dilma. Estimulou-se assim a leniência fiscal desses entes, o que abre a possibilidade de importante passivo para o governo federal no futuro, dada a situação financeira crítica de estados e municípios.
Todos esses são fatores que se não desrespeitam a explicitamente a LRF, certamente ferem seu espírito. Além de cumprir leis, é necessário fugir da tentação de interpretações criativas da lei. Por este aspecto, o país sofreu retrocesso institucional nos últimos anos. A temerária condução da política fiscal mostra a necessidade de reforço da LRF e complementação de sua regulação. Muito do que nela constava nunca foi implantado.
As consequências sobre a economia foram claras. A ampliação da expansão fiscal em 2014 ajudou a sustentar artificialmente a taxa de desemprego e o consumo das famílias, apesar do quadro recessivo causado pela própria crise fiscal. Assim, a crise fiscal demorou a se materializar plenamente sobre o mercado de trabalho, dando sustentação política ao governo em 2014. Pior ainda, agravou o que veio depois. Trocou-se um ajuste em 2014 por uma crise muito mais grave em 2015.
Apesar dos conhecidos e reconhecidos erros dos últimos anos, em nada se avançou este ano para reforçar instituições para disciplinar a política fiscal. É crucial evitar a repetição de práticas adotadas nos últimos anos que se imaginavam impensáveis em uma democracia moderna. As instituições falharam e agora a sociedade colhe a armadilha da recessão com inflação elevada.
A experiência dos últimos anos e particularmente de 2014 foi ruim para a economia, para as instituições e para a democracia. Que a legitimidade do voto esteja apoiada em alicerces sólidos.
Fonte: O Estado de S.Paulo, 16/12/2015.
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