Como as chuvas de verão, a bênção paterna e o beijo de amor, eu volto ao meio-oeste americano. Aqui — meus amigos acostumados à conexão LeblonNew York City — não há a variedade babilônica da Grande Maçã nem aquele estranho (e falso) sentimento de que todo mundo é cosmopolita — essa máscara que as grandes cidades fingem.
Pois nessa Champaign-Urbana, Illinois, Estados Unidos, entre imensos milharais e campos de soja, os nativos estão enraizados e não temem confessar que Chicago é a sua mais longínqua fronteira existencial. Como uma vez me disse uma amiga daqui do lado, de South Bend, Indiana: “Eu jamais pensei em sair dos Estados Unidos. Por que? Ora, porque everything is here! (porque tudo está aqui).” A mesma resposta de minha amada e saudosa mãe quando falava de sua idealizada Manaus do Teatro Amazonas, do Clube Ideal e do Alto de Nazareth, onde o universo revestido pelo ouro que recobre grande parte do nosso passado parecia perfeito mesmo quando o que se viveu foi impensável.
O tempo, como sabem melhor os ibéricos, como o padre Vieira, Fernando Pessoa e Eça de Queiroz, é o remédio para tudo. Sobretudo para as nossas mais profundas feridas, porque na sua passagem e na sua majestática indife-rença ele lixa a alma e faz com que os vales e as montanhas de sofrimento, ressentimento, rejeição e frustração tornem-se planícies. “Amanhã — como disse Clark Gable em ‘E o vento levou…’ — será outro dia!” O problema é ter paciência e esperar. Só amor — esse grandioso amor humano — fica como alento, oásis e ponte.
Aqui há uma calma de ruas seguras e vazias; uma melancolia que cai das árvores e remete àquelas músicas outonais que falam do milagre das folhas virando chamas. Imagino se Cole Porter, nascido em Peru, Indiana, bem no meio dessas planuras, não carregava no coração esse cheiro de outono quando fez aquelas músicas que eu sempre canto com lágrimas nos olhos: “Everytime we say goodbye, I die a little/ Everytime we say goodbye, I wonder why a little…” — todas as vezes que nos despedimos, eu morro um pouco; todas as vezes que nos despedimos, eu me surpreendo um pouco
Quantas vezes morremos e matamos, como ocorre nas disputas eleitorais que acendem as velhas paixões e revivem suas mentiras como a de que, um dia, com o salvador (e agora perseguido das elites) Lula, o Brasil vai estar pronto e acabado. Ou na sua dura verdade que toda democracia precisa ser construída todo dia. Estou seguro de que a grande maioria descobriu que popularidade, ressentimento, agressão às instituições liberais e corrupção permanente pulverizam votos.
A velha fórmula demagógica de entregar o Brasil a uma tomadora de conta — a supermãe do sistema — não funciona.
Numa democracia todos são importantes, acima de tudo o conjunto dos seus cidadãos comuns e ativos, e não um bando de comodistas que precisam de cuidadores. Quem quer entregar o país para uma candidata inventada por um presidente que se pensa dono de todas as verdades?
Voltei aos Estados Unidos e fico por muito pouco tempo. A velha familiaridade com o estilo de vida ressurge automaticamente dentro mim. Ela traz de volta o respeito pelos outros como moeda corrente. E, tal como ocorreu com Alexis de Tocqueville, vejo nessa preocupação com o próximo o outro lado de um individualismo que sempre me assombrou. Quanto mais forte o individualismo, mais solidão, menos relações e, no entanto — eis o que Tocqueville foi o primeiro a descobrir — mais associacionismo e institucionalização. Tal como a santidade precisa de pecado, a igualdade e o individualismo necessitam os seus contrários, como notava o gênio aristocrático desse francês não lido no Brasil porque sempre foi considerado um reacionário pelo nosso radicalismo chique e acadêmico. Com isso, a América é local onde obedecer as regras é tomado como algo positivo e inteligente, não como sinal de inferioridade ou burrice como no Brasil.
Ontem, por exemplo, um jovem me cedeu passagem na porta de uma loja, reverente para com um “old professor”.
Assim que cheguei fui convidado para o tal “lunch” que em nenhuma hipótese pode ser comparado ao nosso “almoço”. Pois, em primeiro lugar, aqui temos muito a escolher e isso confunde; depois porque todos servem em bandejas e isso me deixa inseguro (como caminhar equilibrando tanta coisa?); em terceiro lugar porque, ao morder um sanduíche de “tuna salad”, ouço dentro de mim uma voz repetindo: isso não pode ser “comida”!; e, finalmente, depois que comemos, somos obrigados pela etiqueta indisputável e indiscutível do local a — eis a ofensa para o meu lado brasileirinho — levarmos os nossos restos para o lixo! A igualdade tem preço. Um preço alto para quem foi criado com criados, para quem adora mordomias. Pois nesta Illinois que não conheceu nenhuma execrável escravidão, cada um é seu próprio dono e mordomo. Temos, pois, a obrigação de levar nossos restos para o lixo. Esse é um aspecto do liberalismo pouco visto e falado no Brasil e, no entanto, crítico para sua existência. Aqui, reitero, não tem criados.
É duro limpar o nosso lixo, como é complicado enxergar a nossa arrogância e os nossos erros. Em tempos de jornada eleitoral, porém, como na viagem que nos torna peregrinos e dependentes das mãos dos amigos locais, definem-se sinceridades, mentiras e competências. E, para provar que as seis famílias donas de jornal não me controlam, faço questão de declarar: para mim, não há dúvida que Serra é, de longe, o melhor. O resto, amigos, como dizia aquele bardo inglês, é silêncio…
Fonte: Jornal “O Globo” – 20/10/10
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