“Caim, que Brasil queremos?”. A indagação que encerra o artigo do procurador Edilson Bonfim (Folha, 3/7) evoca a mítica fonte do mal e da violência. É uma conclusão apropriada para um texto eivado de ódio, mas que funciona como síntese perfeita do discurso reativo de Sergio Moro e dos procuradores da Lava Jato.
Diante das revelações oferecidas pelo The Intercept Brasil, eles respondem com dois argumentos sucessivos, incongruentes entre si.
1) Os diálogos foram obtidos por hackers (“a flor do mal de mais um crime”), podem ter sofrido adulterações (“como saber da autenticidade, contexto ou conteúdo das mensagens?”) e sua publicação destina-se a caluniar as autoridades judiciárias, condenando-as à “morte moral”.
2) As mensagens não indicam nenhuma violação das leis e normas do processo penal (“o seu conteúdo é normal como diálogo de autoridades públicas”).
Um ou outro, senhores! Se é verdadeiro o segundo argumento, inexiste tentativa de calúnia. Nessa hipótese, Moro e os procuradores deveriam celebrar a publicação, que comprovaria de uma vez a lisura do processo. Mas, pelo contrário, como sinaliza a fúria santa do artigo de Bonfim, tudo é anormal nas mensagens que evidenciam o conluio entre juiz e Estado acusador na montagem de estratégias jurídicas e de comunicação midiática.
O segundo argumento é um medíocre exercício de contradição: a negação de um fato incontroverso. Já o primeiro orbita o planeta da especulação vazia. Qual é a prova de que as mensagens foram obtidas por hackers (e não por um procurador de facção rival, por exemplo)?
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Há algum vestígio, por mínimo que seja, a sugerir falsificação dos diálogos?
“Ó crime sórdido! Caluniam-me ao dizer que escrevi essas coisas, que posso ou não ter escrito —mas, se de fato as escrevi, nada fiz de errado.” O cerne do discurso de Moro e dos procuradores emana do manual de advogados embrenhados na missão de produzir uma defesa para réus carentes de álibis verossímeis. O fato embaraçoso é que, postos diante de um caudal de diálogos referentes ao principal caso jurídico de suas vidas, não conseguem apontar uma única instância de falsificação.
A conjunção dos dois argumentos resulta em catástrofe lógica. Daí, o recurso a um terceiro, de tipo nuclear: a acusação de que os críticos de Moro e dos procuradores não passam de agentes de corruptos presos ou ainda soltos (“mais de uma centena de potentados acusados”). Aí, sim, nas palavras de Bonfim, identifica-se “o parto de uma calúnia”.
Na estante dos argumentos polêmicos, o ataque “ad hominem” ocupa a prateleira inferior: algo como virar a mesa, levar embora a bola do jogo, chamar o irmão mais velho. Mas, na esfera política, é ferramenta cotidiana dos espíritos autoritários. Sob esse aspecto, os fiéis de Moro emulam o procedimento padrão dos regimes comunistas. Critique Stálin (ou Castro, ou Maduro) e você será um agente da CIA. Critique as sagradas figuras da Lava Jato e será um comparsa dos corruptos.
Bonfim só menciona a Constituição, a lei, o Código de Processo Penal para circundar o tema da separação entre juiz e Estado acusador. No lugar disso, dedo em riste, fala do povo e do inimigo do povo, em alocuções condoreiras: a “grandeza bilionária das cifras da corrupção, abjeto monstro que produz exclusão social”, “mais uma tunga na história e no povo brasileiro nacional” (sic).
Seu discurso, que reproduz o utilizado por Moro na Câmara, pede tradução. Ele está dizendo que a lei deve se curvar ao interesse do povo, tal como interpretado por seus arautos. Todos os regimes autoritários do mundo dizem isso.
Lula é um detalhe, quase uma nota de pé de página, nessa história triste. Não é necessário acreditar na inocência do ex-presidente para desprezar juízes e procuradores que se pronunciam como políticos. Mais precisamente, como políticos populistas.
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 06/07/2019