A história da Bolívia não é exatamente um exemplo de estabilidade e democracia. Da independência, em 1825, até a eleição de Evo Morales, em dezembro de 2005, foram ao todo 83 governos. Desses, 36 não duraram mais de um ano e apenas 37 podem ser considerados “governos de fato”, na definição do jornalista Martín Sivak, biógrafo de Evo. Até hoje, segundo ele, nenhum historiador conseguiu precisar a quantidade exata de golpes de Estado.
Não é, portanto, coincidência que o próprio Evo tenha se declarado vítima de golpe logo depois de ter renunciado ontem, sob pressão dos líderes militares e policiais – e dos protestos que tomam as ruas do país há três semanas diante das evidências eloquentes de fraude na eleição que lhe renderia o quarto mandato. Ele já tinha feito isso quando vieram à tona as primeiras denúncias da fraude (leia mais aqui).
A Bolívia, talvez mais que qualquer outro país na América Latina, representa o estereótipo do país pobre, desigual, institucionalmente frágil, volta e meia sujeito a quarteladas. Se Evo permaneceu no poder 13 anos, 9 meses e 18 dias – foi o mais longevo dos presidentes bolivianos –, período em que a pobreza caiu pela metade, a inflação se manteve sob controle e a economia boliviana cresceu mais que a média latino-americana, foi por ter, de alguma forma, rompido essa tradição.
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Mas não necessariamente por ter sido um líder mais democrático. Os cambalachos e piruetas jurídicas a que recorreu para se manter no poder integrariam facilmente o rol das táticas de jogo duro a que o cientista político Steven Levitsky atribui o esgarçamento das democracias em best-seller recente. Faz anos que faltam a Evo o comedimento e respeito institucional que definem as democracias estáveis.
As evidências de fraude nas eleições do último dia 20 de outubro são apenas o último item de uma longa lista de manobras dúbias. Em 2009, a nova Constituição lhe vetava um terceiro mandato. Evo precisou do aval do Tribunal Superior Constitucional para concorrer novamente, sob o argumento de que o novo texto só poderia dispor a respeito de mandatos contados em sua vigência.
Em 2016, convocou um plebiscito para ser autorizado a concorrer pela quarta vez. Derrotado nas urnas, recorreu novamente à Corte suprema de seu país, que autorizou sua candidatura, desta vez sob um pretexto ainda mais ridículo: o limite de mandatos viola a garantia constitucional de que qualquer cidadão tem o direito de candidatar-se. Em desrespeito ao resultado do plebiscito, Evo pôde então concorrer este ano.
Entre os líderes da esquerda bolivariana no continente, Evo adotou uma postura ambivalente. Não adotou o caminho da ditadura de Nicolás Maduro na Venezuela, com a violação flagrante de direitos humanos, censura e ruptura institucional. Mas também não assumiu a postura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e do PT que, apesar de toda a radicalização do discurso e da demagogia, jamais deixaram de se submeter à lei, tanto no caso do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff quanto nas condenações da Operação Lava Jato.
Na origem, Evo tem mais comum em Lula que com Maduro ou Hugo Chávez. Ganhou projeção como líder sindicalista dos cocaleros, sempre teve grande talento para articulação e negociação política, empatia e capacidade de relacionamento pessoal com jornalistas e meios de comunicação, um discurso marxista de tons moderados e até mesmo uma paixão genuína pelo futebol, esporte que pratica desde a infância pobre no altiplano.
Como Lula enquanto governou, Evo soube ser pragmático na gestão da economia. No início do governo, nacionalizou a produção de gás e desapropriou ativos da Petrobras com o beneplácito do brasileiro. Garantiu, com isso, um fluxo de receitas suficientes para manter um nível sensato de superávit primário até 2014. Em desafio à política defendida pelos Estados Unidos, conseguiu controlar o uso da folha de coca na produção de cocaína e retirou a Bolívia das prioridades na “guerra às drogas” americana.
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O rigor fiscal degringolou com a crise das commodities, a queda das exportações de gás ao Brasil e as demandas sociais crescentes dos pobres que melhoravam de vida. Acirrou-se a tensão entre o altiplano, indígena e cocalero, e províncias como Santa Cruz, em que o agronegócio é a principal atividade. Ao desafiar as instituições para manter-se no poder, Evo acabou por engendrar a crise política que resultou na renúncia coletiva de presidente, vice-presidente e dos líderes do Senado e da Câmara.
A Constituição boliviana não tem resposta para o que fazer em tal situação. Qualquer saída será um novo cambalacho institucional. Independentemente do desfecho, a Bolívia traz um alerta aos países da região: preservar a democracia e as instituições é mais importante que garantir o êxito econômico, muitas vezes temporário e sujeito ao cenário externo. O respeito à democracia não é garantia de que governantes farão o certo ou o melhor. Apenas de que, se não fizerem, sairão do poder sem crises nem a violência inerente aos golpes de Estado.
Fonte: “G1”, 11/11/2019