Direito das ruas
Pinga da mesma pipa
O exército que luta pela continuação dos foros privilegiados é vasto e bem armado. Para começar, vai muito além dos deputados federais e senadores – esses aí levam quase toda a culpa pela existência do sistema, pois ficam com a imagem de serem os únicos que tiram vantagem dele. Mas não é assim. Na verdade, é o contrário: há 513 deputados e 81 senadores, num total de 594 beneficiários, e isso é um pingo d’água no total de brasileiros protegidos no momento pelos diversos tipos de impunidade em vigor para quem tem carteirinha de “autoridade”. Pode ser difícil de acreditar, mas o fato é que o contribuinte paga, no presente momento, os salários, benefícios e futuras aposentadorias de nada menos que 55.000 indivíduos que têm o direito de não responder à justiça pelo que fazem, de uma batida de carro ao estupro qualificado – não da mesma forma que respondem os demais 200 milhões de habitantes deste país. Desfrutam dos privilégios, numa conta geral, todos os juízes, desembargadores e ministros de tribunais superiores – incluindo-se aí os “tribunais de contas”. Só de juiz, neste bolo, são mais de 17.000.
Somam-se a eles os procuradores, subprocuradores, promotores e tudo mais que faz parte da armada de ministérios públicos que há por aí. São um monte, acrescidos de “núcleos” — para o Trabalho, o Meio Ambiente, a Cidadania, a Mulher, o Índio, o Gênero e por aí vai, até onde alcança a capacidade do serviço público em multiplicar a própria espécie. Entram também os 27 governadores de Estado, os prefeitos e os comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica. Têm foro especial, ainda, todos os ministros de Estado, e aí a proteção vale realmente para qualquer um – vale, por exemplo, para essa ministra que se acha escrava por ganhar só 33.000 reais por mês. Soma-se mais umas turminhas de burocratas aqui e ali, e pronto – eis aí os tais 55.000. Em que país bem arrumado deste mundo existe alguma coisa parecida? Por que o resto da humanidade estaria errada e brasileiros estariam certos? (Juízes e procuradores, aliás, ficam horrorizados com o foro privilegiado e as imunidades dos políticos, mas acham a coisa mais normal do mundo que o mesmo privilégio seja aplicado a eles próprios).
É claro que toda essa multidão, mais suas famílias, amigos e amigos dos amigos, são furiosamente a favor da manutenção das “imunidades”. Não abrem mão nesta vida, de jeito nenhum, de três coisas: os salários acima do teto legal, os “benefícios” que obrigam o cidadão brasileiro a lhes pagar, fora isso, a comida, a casa, o carro e sabe Deus o que mais, e o “foro especial”. Utilizam, em seu favor, um argumento antigo e que hoje se tornou apenas velho – o de que os privilégios legais servem para defender a sociedade inteira, e não apenas os seus beneficiários diretos. Os políticos, por exemplo: não poderiam exercer com liberdade os mandatos para os quais foram eleitos se estivessem sujeitos o tempo todo a processos judiciais que certamente seriam abertos contra eles por seus adversários. Os magistrados e procuradores, da mesma maneira, não poderiam julgar ou denunciar os inimigos da sociedade de forma imparcial e independente, se vivessem sob o risco de ficar atolados em processos judiciais movidos por governos, réus influentes e outras forças poderosas. Seria, em suma, a defesa da democracia, das liberdades e das instituições. Mas não é nada disso.
Nenhum político ou magistrado precisa de imunidades para exercer com liberdade, consciência e autonomia os seus mandatos e funções. Basta que sejam honestos; basta que não pratiquem crimes previstos no Código Penal Brasileiro. As prerrogativas legais que protegem hoje o seu trabalho continuariam a existir, perfeitamente, se fosse suprimido o foro especial como ele funciona; ninguém sugeriu, nem de longe, que tais garantias fossem diminuídas. Se um cidadão honesto não precisa de nenhuma “imunidade” para viver e trabalhar em paz, por que raios um deputado, juiz ou promotor público haveria de precisar? Isso aqui, afinal, não é nenhuma ditadura onde os donos do governo podem cassar deputados ou demitir juízes de direito que os desagradam. O foro especial, na verdade, é inútil para proteger os honestos; serve unicamente para salvar o couro de quem quer roubar, vender sentenças e praticar outros crimes.
Naturalmente, juntam-se aos interessados diretos na defesa das imunidades todos os partidos, lideranças e militantes partidários do Brasil. Estão nessa turma, é claro, todos os escroques das nossas gangues políticas. Mas o escândalo real, neste assunto, é o apoio que a impunidade recebe do PSDB e do PT e seus satélites – os “partidos éticos”, vejam só, que se dizem diferentes do lixo geral e se apresentam ao público, num caso e no outro, como modelos de integridade ou campeões das causas populares. Alguma vez as imunidades prejudicaram um rico? Alguma vez beneficiaram um pobre? Mas aí é que está. O senador Aécio Neves, vice-rei do PSDB, foi flagrado numa tentativa de extorsão e hoje vive sob a proteção do foro privilegiado; no dia da votação sobre o seu destino, a presidente do PT, em vez de comparecer ao Senado, conseguiu estar na Rússia. Pior: do maior líder popular que este país já teve não se ouviu até agora um pio contra essa safadeza disfarçada de “garantia constitucional”. O problema é que quando há uma injustiça deste tamanho na frente de todo o mundo, dessas que clamam aos céus, e você fica em silêncio, não tem saída: você é cúmplice. Lula e o PT, tanto quanto seus grandes adversários, estão a favor do foro privilegiado na vida real. Sem o seu apoio, jamais se mudará nada disso. Mas porque iriam combater o que mais lhes ajuda?
Fonte: “Veja”, 12/12/2017
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