Foto: Andrew Harnik/AP
Veio a público na quinta-feira (16) o texto da primeira etapa do acordo entre a China e os EUA.
O acordo é prejudicial ao Brasil, pois estabelece níveis mínimos de importação da China de produtos dos EUA. Prática não aceita pela OMC (Organização Mundial do Comércio), pois discrimina os demais ofertantes.
Como escreveu meu colega Renato Baumann, o acordo parece “um tipo de contrato de adesão, pelo qual a China se compromete a adotar uma série de medidas”.
Diversos artigos terminam com a expressão “as medidas já existentes nos EUA promovem tratamento equivalente ao estabelecido neste artigo”. Há ajuste unilateral da China às práticas americanas.
O capítulo com o maior número de artigos é o primeiro, que trata da propriedade intelectual. Esse é o tema sensível. A ideia é combater a pirataria. Em particular, o artigo 1.5 é muito forte. Estabelece que, em casos que tramitam na Justiça civil de violação de direito de propriedade intelectual, o ônus da prova será do acusado pela prática de violação, se o acusador apresentar evidências circunstanciais ou uma razoável indicação da violação.
Analogamente, a alegação de que um suposto segredo industrial não é um segredo (de fato), por ser de conhecimento amplo das pessoas que pertencem ao círculo que lida com o tema, terá que ser provada.
Mais de Samuel Pessôa
Competição, bem-estar e desigualdade
Eleição no presidencialismo de coalizão
Lenta retomada com melhoras pontuais
O segundo capítulo, sobre transferência tecnológica, estabelece condições para que as empresas americanas que operam na China não sejam forçadas a transferir tecnologia.
O capítulo 3 trata do comércio de bens alimentares e bens agrícolas em geral, e o capítulo 6 estabelece cronograma de aumento das compras pela China dos produtos norte-americanos.
O capítulo 4 trata dos serviços financeiros. Este último item aprofunda medidas que já vêm sendo tomadas nos últimos anos e visa garantir na China tratamento isonômico, para as instituições financeiras americanas. A medida aprofunda a integração financeira dos dois gigantes.
O capítulo 5 estabelece medidas para o câmbio —totalmente inócuas—, e, o capítulo 7, princípios gerais de resolução de conflito.
Ficou de fora do acordo o tema muito sensível dos subsídios do governo chinês às empresas. Várias dessas práticas são condenadas pela OMC e fonte de muita reclamação, por concorrência desleal, da parte do setor privado mundo afora.
Não sabemos se o acordo é para valer ou se trata somente de algo “para americano ver”. Não tenho claro qual é o custo de conformidade das medidas.
A análise otimista, para o longo prazo da economia mundial, é que o gigante asiático considera que virou gente grande. Que a fase de ser um emergente entrando no clube dos adultos passou —momento em que todo o mundo cometeu seus pecadilhos (basta lembrar os piratas a serviço da rainha da Inglaterra assaltando os galeões do rei de Espanha)—; e que estão dadas as condições para o estabelecimento de um terreno comum justo para a disputa econômica.
Se for esse o caso, o acordo será uma via para aumentar a integração entre as duas economias. Terá se reduzido o risco, hoje elevado, de tornar a economia global bipolar, com a necessidade de reconstrução de todas as cadeias globais de valor a partir da bipolaridade, com custos de transição elevadíssimos e incalculáveis.
Assim, apesar dos custos diretos e imediatos para o comércio brasileiro com a China, o acordo, em termos dos seus efeitos provavelmente benéficos para a economia mundial, também tem um lado positivo para o Brasil.
Fonte: “Folha de São Paulo”, 19/1/2020