Nem Jornadas de Junho nem locaute contra Allende. O caso mais parecido com o protesto dos caminhoneiros foi o Paro contra o aumento do imposto de exportação (“retenciones”) e sua flutuação pelo preço internacional, decretado por Cristina Kirchner no início de seu mandato, em março de 2008.
A paralisação durou três meses e o bloqueio geral das estradas causou desabastecimento em larga escala no país. A crise foi dramática, levando 10 mil pessoas às ruas em um “cacerolazo” e também a um manifesto de 750 intelectuais denunciando o “movimento destituinte”. O governo também entrou em conflito aberto com a mídia e acusou o grupo Clarín de conluio com os “golpistas”.
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Com as Jornadas de Junho só há em comum a escala e o impacto. O protesto dos caminhoneiros não foi movido pela insatisfação difusa com serviços públicos, corrupção e representação política, embora o apoio que logrou obter da população dela tenha se alimentado. Mas não foi o seu leitmotiv.
A paralisação tampouco foi um protesto de consumidores urbanos, mas de empresas e prestadores de serviço contra o ônus tributário do setor de transporte de cargas. É produto da disputa redistributiva instalada com a crescente restrição —agora institucionalizada— à elevação do gasto e da carga tributária.
Devido aos protestos, Kirchner recuou e reenviou a proposta como projeto de lei que, no entanto, não foi aprovada no Senado devido ao voto de minerva do presidente da Casa —e também vice-presidente da República—, Julio Cobos.
Cabeças rolaram: na Argentina a do ministro da economia, Martín Lousteau, e entre nós, a de Pedro Parente. Temer —um pato mais morto que manco— instigou demandas que se tornaram predatórias. O país pagou o preço pela decisão do TSE mantendo o presidente no cargo por “excesso de provas”.
Quem se beneficia do Paro à brasileira? A primeira consequência é que a esquerda perdeu para a direita a bandeira do “Fora, Temer”. A segunda é que o PT e o presidente Lula saíram do radar político na quinzena crítica de anúncio de sua candidatura.
A terceira é que a crise alavanca a demanda por ordem, o que potencialmente beneficiaria Bolsonaro. No entanto, esse efeito é mitigado por um movimento em direção contrária de aversão ao risco.
Bolsonaro aparece neste quadro como potencialmente gerador de incerteza e instabilidade, aumentando o valor relativo do conhecido sobre o novo.
O beneficiário natural é Alckmin, que representa segurança, arrefecendo a demanda por renovação. Embora a gestão tucana da Petrobras tenha sido arranhada, o tema Petrobras traz à baila o Petrolão, que ao PT e a aliados interessaria sepultar.
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 04/06/2018