Longínqua é a época em que o PT vestia-se de defensor de uma outra forma de participação política, procurando seduzir não somente os incautos do Brasil, mas também os do mundo. A soberba já naquele então desconhecia limites, mas apresentava-se sob as sandálias da humildade.
Era o mundo da dita “democracia participativa” e da mensagem, no Fórum Social Mundial, de que um “outro mundo era possível”. Porto Alegre tornou-se o símbolo que irradiava para todo o pais e para além dele, transmitindo a imagem de uma grande solidariedade, de uma paz, que o partido encarnaria.
Contudo, para todo observador atento, a farsa era visível; porém foi eficaz levando o partido a conquistar três vezes a Presidência da República, deixando rastros de destruição com a queda acentuada do PIB, a inflação acima de dois dígitos, mais de 12 milhões de desempregados e a corrupção generalizada. Dirigentes partidários foram condenados e presos a partir do mensalão e do petrolão. Antes o partido possuía um currículo baseado na ética na política, hoje uma folha corrida.
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No dito Orçamento Participativo das administrações petistas de Porto Alegre, já apresentava-se o engodo, a enganação e, sobretudo, o desrespeito pela democracia representativa, tão ao gosto dos petistas atuais. Reuniões de 500 pessoas em bairros da cidade, cujo um terço dos participantes era constituído por militantes, decidiam por regiões inteiras de mais de 150 mil ou, mesmo, 200 mil habitantes. Impunham uma representação inexistente, em uma espécie de autodelegação de poder. O partido tudo instrumentava, arvorando-se em detentor do bem, o bem partidário confundido com o público.
Em um Fórum Social Mundial, os narcoterroristas das Farc foram recepcionados no Palácio Piratini, sob o governo petista de Olívio Dutra. Lá, numa das sacadas do prédio, discursou, em outra ocasião, Hugo Chávez, com sua arenga esquerdizante, líder do processo que está levando a Venezuela a um verdadeiro banho de sangue, com a miséria e a desnutrição vicejando como uma praga, a praga, na verdade, do socialismo do século XXI. Eis o “outro mundo possível”, louvado pelos atuais dirigentes do partido. Entretanto, a vantagem, hoje, é a de que a máscara caiu. O partido, pelo menos, tem o benefício da coerência.
A máscara caindo mostra com mais nitidez que a democracia representativa nada vale e que a violência é o seu significante. A mensagem de paz tornou-se mensagem de sangue. A presidente do partido não hesitou em afirmar que a prisão de Lula levaria a “prender” e a “matar gente”. A tentativa de conserto posterior nada mais foi do que um arremedo.
Conta o fato de ter ela expresso uma longa tradição marxista-leninista de utilização da violência, da morte, acompanhada, segundo essa mesma tradição, de menosprezo pelas instituições democráticas e representativas, na ocorrência, sob a forma de um desrespeito aos tribunais. A democracia, para eles, só possui valor enquanto os favorece. Desfavorecendo, deve ser liminarmente deixada de lado. Mesmo que seja sob a forma jurídica de pedidos de liminares, para que a luta continue.
Não sem razão, contudo, o PT e seus ditos movimentos sociais consideram este dia 24 como decisivo, o de seu julgamento. Para eles, tal confronto exibe-se como uma espécie de luta de vida e morte. Nela, ao jogar-se a candidatura de Lula à Presidência da República, caindo, em sua condenação, o ex-presidente sob a Lei da Ficha Lima, está em questão a “vida” do candidato e do seu partido. Esse, aliás, escolheu identificar-se completamente a seu demiurgo, selando, com ele, o seu próprio destino. O resultado é uma batalha encarniçada, o seu desenlace constituindo-se em uma questão propriamente existencial.
A imagem da “morte”, segundo a qual os militantes fariam sacrifício por seu líder, não suportando a figura de sua prisão, nada mais faz do que revelar o profundo divórcio do partido em relação à democracia representativa, com as leis e suas instituições republicanas. Pretendem sujar a Lei da Ficha Limpa com o sangue de seus seguidores.
Assim foi na tradição leninista: os líderes mandavam os seguidores para o combate e a morte, permanecendo eles em vida e, depois, uma vez conquistado o poder, usufruindo de suas benesses. O sangue do ataque ao Palácio de Inverno e a vitória da Revolução Bolchevique levaram aos privilégios da Nomenclatura, dominando com terror um povo que veio a ser assim subjugado.
Segundo esta mesma lógica “política”, sob a égide da violência, Lula e os seus dividem os seus apoiadores dos seus críticos, nomeando os primeiros em “amigos” e os segundos em “inimigos”. Sua versão coloquial é a luta do “nós” contra “eles”, dos “bons” contra os “maus”, dos “virtuosos” do socialismo contra os “viciados” pelo capitalismo. Ora, tal distinção, elaborada por um teórico do nazismo, Carl Schmitt, é retomada por este setor majoritário da esquerda, vindo a expor uma faceta propriamente totalitária. Lá também a morte, o sangue e a violência eram os seus significantes.
O desfecho do julgamento do dia 24, estruturante da narrativa petista, será vital para o destino do partido. Em caso de condenação, o que é o mais provável, o partido continuará correndo contra o tempo, em uma corrida desenfreada através de recursos jurídicos, procurando esgotar os meios à sua disposição do estado democrático de direito.
Assim fazendo, tem como objetivo produzir uma instabilidade institucional que venha a lhe propiciar a conquista do poder, produzindo um fato consumado em uma eventual eleição sob judicie. Seria consumar a morte da democracia representativa, solapando o seus próprios fundamentos.
Resta saber se o partido conseguirá, para a concretização de seu projeto, realizar grandes manifestações de rua. Se lograr, a democracia representativa sofrerá sérios riscos. Se malograr, o partido estará fadado a divorciar-se ainda mais da sociedade. A narrativa soçobraria na falta de eco.
Fonte: “O Globo”, 22/01/2018
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