O estamento jurídico brasileiro saiu extremamente fortalecido do processo constituinte de 1988. A desconfiança recíproca entre os atores políticos, assim como o temor em relação à democracia por parte daqueles que haviam apoiado o regime militar, levou a que todos buscassem proteger seus interesses no texto constitucional. A constituição virou, assim, uma espécie de seguro, em face de um futuro incerto.
Ao Ministério Público e à Justiça foram atribuídas grandes responsabilidades para zelar pelo pacto. Ao STF, em particular, ficou a função de moderar conflitos e contribuir para que a coordenação do processo político se desse sem sobressaltos. Foi o que fez no processo de impeachment de Collor.
Com o início do processo do mensalão, os estamentos político e jurídico começam a se estranhar. O tradicional padrão de submissão do estamento jurídico ao político foi colocado em xeque.
O padrão de promiscuidades do presidencialismo de coalizão, transformado em presidencialismo de cooptação, passou a ser questionado pelo estamento jurídico. Como o peso da lei se voltou, originalmente, apenas contra uma das facções do mundo político, contou com o entusiasmado apoio das demais.
O TSE e o STF também passaram a promover uma reforma do sistema eleitoral e partidária, aumentando a tensão com o campo político. Impediram o estabelecimento das cláusulas de barreira, aprovadas pelo Congresso, buscaram estabelecer regras mais duras de fidelidade partidária e determinaram que as coligações eleitorais deveriam ser verticalizadas.
O estamento político não tardou a esboçar uma reação, revertendo a verticalização das coligações, criando novos partidos, e apresentando projetos como “Lei da Mordaça” ou a PEC 34, voltadas a retirar o poder de investigação do Ministério Público e limitar a liberdade de comunicação de seus membros. Mas aí vieram as jornadas de 2013, que tinham entre suas principais reivindicações o fim da impunidade e a reforma do sistema político. Logo depois vieram as manifestações de 2014, dando amplo apoio à Lava Jato.
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A Operação Lava Jato, a partir de 2014, marcou o maior triunfo do estamento jurídico sobre o político, culminando com a prisão de Lula. Ao lado de dezenas de outras operações encabeçadas pela Polícia Federal e pelo Ministério Público, foram expostas as entranhas da corrupção política e empresarial.
Na medida em que a espada da Justiça passou a também atingir os mais diversos espectros do sistema político, favoreceu uma inusitada aliança de antigos adversários políticos contra o estamento jurídico. Velhos aliados dentro da Justiça foram mobilizados, e agora falam em autocontenção.
No meio desse embate o Supremo desferiu uma nova estocada, proibindo o financiamento empresarial de campanhas eleitorais, com o objetivo de interromper essas correntes de corrupção eleitoral.
A resposta do estamento político foi rápida. Promoveram uma pretensa reforma política e a expansão dos gastos públicos com as campanhas, com o objetivo de impedir a renovação na política e reforçar o poder das oligarquias partidárias.
Passados pouco mais de uma década do início das hostilidades, o estamento político se prepara para uma nova eleição.
A desenvoltura com que os líderes do Centrão, muitos deles envolvidos nos escândalos do mensalão e da Lava Jato, ofereceram seus dotes nesta semana de convenções partidárias, dá a dimensão da resiliência do sistema partidário em face do direito penal.
Pelas propostas de retaliação ao sistema de Justiça, a batalha deve continuar após as eleições.
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 04/08/2018