As palavras chegam como guardas. É por meio delas que ficamos sabendo quando somos bem-vindos, corremos perigo ou somos incipientes. Como ensinou um filósofo, as palavras fazem coisas como juramentos, ofensas e promessas. Com elas travamos um infinito combate contra a ignorância.
O governo tem persistido na estupidez de confundir certas manifestações do mundo universitário com a sua nobre dimensão intelectual. Estou farto de conhecer a precariedade brasileira relativa ao mundo da instrução, da vida acadêmica e, acima de tudo, da grandeza intelectual. Uma prova disso é a piada abominável segundo a qual quem não sabe, ensina! E para tanto recebeu uma “bolsa de estudo” cujo sentido ambíguo remete tanto ao combate à estupidez quanto às vergonhosas mochilas e quartos cheios de dinheiro roubado. “A bolsa ou a vida!”, dizem bandidos, jamais um ministério que “cuida” da educação…
Há diferenças entre ensinar crianças e instruir adultos pesquisadores e intelectuais. Há motivos para considerar que quem ensina crianças tem mais importância relativa do que quem ensina adultos. Ensinar quem experimenta a vida fora de casa e o relacionamento com seus genitores é um ato “primário”. Não deve haver apenas “primeiras letras” – o que deve haver é, sobretudo, uma “primeira cidadania”. É o exercício de um comportamento igualitário e respeitoso ao lado de laços sociais isentos dos afetos lenientes da família e da casa. O ensino elementar deve transformar filhinhos de famílias, nobres ou pobres, em “alunos”. No Brasil, há o costume de chamar esses primeiros educadores de “tios” quando, de fato, eles devem ensinar como passar de filhos a alunos. Uma pessoa associada a um conjunto não governado pelas hierarquias da casa, mas por normas que valem para todos.
A escola primária faculta uma primeira experiência aberta com a igualdade. O ensino secundário e o superior deveriam consolidar tal aprendizado, ofertando “bolsas” a quem precisa. Em inglês, “bolsa” é “scholarship” e houve quem traduzisse a palavra como “navio de acadêmicos”. O que, mesmo promovendo risos, não é de todo um erro já que uma “scholarship” é um meio de realização intelectual. Traduzir “bolsa” como dinheiro fácil e ideologizado como são as polpudas verbas que os políticos inventam em causa própria, revela ignorância (ou má-fé). Bolsas de estudo são um investimento essencial num mundo com mais informação do que compreensão. Suprimir bolsas é contribuir para manter os nossos pomposos “burros doutores” e o uso do título acadêmico como privilégio.
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Fui bolsista do Conselho Nacional de Pesquisas, da Comissão Fulbright, da Fundação Ford, da Universidade de Harvard, da Fundação Guggenheim e Calouste Gulbenkian. Sem essas bolsas (ou navios) eu não teria saído de Niterói…
Foram as bolsas que me permitiram estudar numa Harvard que sempre colocou a excelência intelectual acima da tendência ao fechamento elitista. Meus pais e avós jamais saíram do Brasil para viver o “lá fora” onde tudo seria melhor. Morreram sem saber que não há sociedades perfeitas e que em todas há um combate permanente entre interesses e normas.
Como um professor antigo, deprime-me testemunhar jovens sendo forçados a desistir de uma vida intelectual crítica e construtiva pela supressão de bolsas. Não pode haver melhor meio de assassinar vocações.
Fosse presidente, contingenciaria outras áreas, fosse milionário gratuitamente graduado numa federal e ex-bolsista, procuraria amigos igualmente milionários e faria um fundo destinado a suprir estudantes carentes. Criaríamos uma agência particular para compensar a burrice do governo. Enfim, faria alguma coisa em vez de simplesmente falar e escrever, que é o recurso que disponho…
Fonte: “O Globo”, 18/9/2019