É legítimo que alguém possa proibir a exposição de um fato ocorrido em sua vida? NÃO
A censura tem vários nomes. Ladina, raramente se assume como tal. Costuma ser invocada em nome da moral, dos bons costumes, da privacidade e até da dignidade humana.
No entanto, qualquer que seja o nome ou o pretexto, o propósito é sempre o mesmo: controlar o que os cidadãos podem saber, para determinar como devem pensar.
O modelo desta estação tem nome pomposo e potencial para fazer estrago letal no livre fluxo de informações: o direito ao esquecimento.
Surgido na França e na Alemanha após a Segunda Guerra, desenvolveu-se a partir de demandas de criminosos que buscavam impedir a divulgação de filmes, peças teatrais ou documentários jornalísticos sobre a sua vida pregressa.
O argumento era fundado no direito à ressocialização e na tentativa de evitar os efeitos negativos do revolvimento de fatos desabonadores ocorridos no passado.
Aos poucos, todavia, as cortes constitucionais europeias deram-se conta dos riscos que esse suposto direito representaria à democracia e passaram a prestigiar em sua jurisprudência, de maneira preponderante, a liberdade de expressão.
Afinal, o desejo de não ser lembrado por fatos pretéritos embaraçosos ou desagradáveis poderia aniquilar o direito à informação.
Foi então que, em 2014, o Tribunal de Justiça da União Europeia determinou que o Google desindexasse o link de uma notícia veiculada há muito tempo pelo jornal espanhol “La Vanguardia” sobre o leilão de um apartamento de propriedade de Mario Costeja González.
Embora o caso estivesse encerrado há anos, González continuava associado à dívida, pois a edição do jornal fora digitalizada e carregada na internet em 2008.
A corte considerou que a informação “não seria mais adequada ou relevante,” embora tenha ressalvado que a notícia não poderia ser retirada do site do jornal, pois aí a liberdade de imprensa seria afetada. Nada obstante, o precedente cria um risco significativo, sobretudo se mal compreendido ou empregado fora de seu contexto original.
O parâmetro da “inadequação ou irrelevância” da informação é problemático, dada a sua imprecisão conceitual e a sua patente vagueza. A margem de subjetividade sobre o interesse público ou o valor histórico da informação é enorme, acarretando insegurança jurídica.
Ademais, nem sempre é possível distinguir, de antemão, os dados irrelevantes, que podem ser descartados, daqueles que serão essenciais à preservação da memória coletiva e da historiografia social.
O Supremo Tribunal Federal discutirá a questão apreciando o caso em que uma emissora de TV exibiu encenação que recontava, de forma absolutamente fidedigna, um crime violento e de grande repercussão praticado contra uma mulher há quase 60 anos.
Em todas as instâncias anteriores a Justiça negou o direito pleiteado pelos irmãos da vítima, rejeitando a tese do direito ao esquecimento. Ora, divulgar informações verdadeiras, obtidas de maneira lícita, constitui prerrogativa fundamental dos veículos de comunicação, cujo exercício não está sujeito a nenhum prazo, nem à autorização ou licença dos personagens envolvidos ou de seus familiares.
Obrigar a sociedade a apagar fatos do passado, simulando uma amnésia coletiva, constituiria uma nova modalidade de censura, igualmente proscrita pela Constituição: a censura no retrovisor.
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 17/06/2017
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