Qual a diferença entre a caneta do juiz e a caneta do eleitor? Até que ponto o voto deve ser visto como um instrumento de condenação ou absolvição de políticos?
Por um lado, o eleitor é chamado a cada pleito a punir ou a recompensar governantes de acordo com sua performance. Se eleitores estão satisfeitos com o desempenho do governante, esse tende a se reeleger ou a fazer seu sucessor. Se a avaliação do governante for negativa, o eleitor considera votar em candidatos alternativos. Eleitores também podem votar de forma prospectiva; ou seja, em favor de uma determinada agenda política ou preferência ideológica.
Mas será que a tinta da caneta do eleitor pode substituir a do juiz? Elas servem para as mesmas funções?
Há quem defenda o voto como uma espécie de super-caneta, superior inclusive à do juiz. Como se, em uma disputa eleitoral que envolva políticos investigados ou já condenados em primeira instância, o verdadeiro e último juiz fosse o eleitor. Consideram que a responsabilização direta do representante diante do eleitor é o princípio constitutivo da democracia.
No caso específico do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, surgiu um movimento liderado pelo ex-ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, intitulado “Eleição sem Lula é Fraude”. Tal movimento, supostamente, já teria recebido o apoio de mais 115 mil pessoas, incluindo artistas e intelectuais de grande prestígio e respeitabilidade.
O objetivo do movimento é pressionar os juízes do Tribunal Regional Federal da 4ª Região para que a condenação de Lula em primeira instância (a 9 anos e 6 meses de prisão por corrupção passiva e lavagem de dinheiro) não seja confirmada. Trata-se de uma alegação de perseguição que contesta a legitimidade da decisão judicial e busca substituí-la por um julgamento popular, expresso na participação do ex-presidente nas eleições de 2018.
A interpretação de que o eleitor teria o poder de fazer Justiça também pode ser identificada em opositores de Lula. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso em discurso recente na convenção do PSDB se posicionou: “Prefiro combatê-lo nas urnas a vê-lo na cadeia”. No entanto, nos dias que se seguiram, FHC publicou um vídeo no Facebook alegando que tinha sido mal interpretado: “não devo eu criminalizá-lo. Nem quero condenar nem absolver Lula. Esse é o papel da Justiça”.
Justiça e eleição são pilares da democracia. Um não vive sem o outro. Entretanto, são vias paralelas, logo não se cruzam. Por isso, não são substitutivos, mas complementares do estado democrático de direito. Julgamentos políticos pertencem à esfera eleitoral e julgamentos criminais pertencem à esfera judicial.
A sociedade brasileira, farta da convivência viciada entre crime e política, reuniu cerca de 1,6 milhão de assinaturas para aprovar a Lei da Ficha Limpa. A nova lei proíbe condenados em decisões colegiadas a partir da segunda instância a se candidatarem a cargos eletivos por 8 anos. Essa radical inovação institucional surgiu de uma iniciativa popular e foi sancionada sem alterações pelo ex-presidente Lula em 2010.
Surpreendentemente, muitos dos que apoiaram a Lei da Ficha Limpa hoje defendem um alegado direito do ex-presidente Lula de se candidatar à Presidência mesmo no caso de confirmação de sua condenação em segunda instância.
A Justiça não é infalível, mas é fundamental que seja imparcial. O que garante essa imparcialidade é o respeito às regras do jogo e o tratamento equânime independente de preferências partidárias ou ideológicas. O eleitor também não é infalível. Não são raros os casos de maus governantes eleitos ou mesmo a reeleição de políticos notoriamente corruptos. Todos somos testemunhas de decisões eleitorais que se revelaram péssimas escolhas políticas. Mesmo assim, mantemos nossos compromissos com decisões judiciais e resultados eleitorais ainda quando não refletem as nossas preferências.
Por que será que no momento em que a implementação da Lei da Ficha Limpa pode trazer riscos à candidatura do ex-presidente Lula, essa que fazia sentido para a maioria da população durante sua promulgação, inclusive para eleitores do próprio ex-presidente, agora poderia ser considerada uma “fraude”?
A literatura experimental de psicologia política tem demonstrado que pessoas tendem a desconsiderar a gravidade de desonestidades quando foram elas mesmas que cometeram o malfeito, mas não o fazem quando os outros foram os autores. Experimentos com médicos americanos, por exemplo, demonstram que em geral eles consideram errado receber presentes da indústria farmacêutica. No entanto, quando perguntados sobre casos específicos em que obtiveram eles mesmos algum benefício individual, por exemplo recursos para participação de conferências, a percepção muda. Justificativas não faltam para se excepcionar a regra baseadas no sacrifício nos anos de treinamento da profissão.
Da mesma forma, sendo ideologia um dos componentes da identidade política, a congruência ideológica entre eleitor e políticos pode alterar a percepção de corrupção. Eleitores tendem a enxergar como honestos políticos corruptos que partilham da sua ideologia. Não se trata de julgar corrupção como correto, mas sim de não conseguir perceber seu candidato como corrupto ou a gravidade do malfeito a despeito das evidências, numa espécie de cegueira ideológica.
Só quando a tinta da caneta do juiz condena atos corruptos de políticos distantes da minha ideologia a percepção de Justiça prevalece? Será que faremos senão confirmar… a máxima de Benedito Valadares: aos amigos tudo, aos inimigos a lei?!
Fonte: “Valor Econômico”, 11/01/2018
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