Há uns dez anos, o ceticismo sobre as perspectivas de substituição de energias fósseis por renováveis era admissível e até razoável. A possibilidade de ser esse o caminho para a descarbonização da economia global enfrentava duplo obstáculo. Primeiro, a própria insuficiência das energias solar e eólica, cuja intermitência deveria condená-las a papel sempre acessório ou complementar na composição das matrizes nacionais. Ao que se somava a debilidade e a incerteza de uma governança global da mudança climática ancorada na precária Convenção-Quadro de 1992, que, em meio a impotente série de anuais conferências das partes, ditas CoP, até gerara o monstrengo chamado Protocolo de Kyoto (1997).
Nada disso mudou. Mesmo que suavizada, a intermitência das principais renováveis permanece. E o Acordo de Paris obtido em 2015, na 21ª CoP – é bem menos efetivo do que querem crer. Como explicar, então, que a transição energética descarbonizadora esteja de vento em popa, combinando crescimento exponencial das renováveis e forte expectativa de declínio da demanda de combustíveis fósseis? Com início previsto para 2023 pelo think tank Carbon Track, e 2025 pela Shell, cenário que já causa sério desespero em explorar petróleo o mais rápido possível.
O essencial da resposta é que o duplo obstáculo está sendo vencido pela revelação das vantagens econômicas, políticas e geopolíticas que farão a demanda primária por energia vir a ser composta – ainda neste século – por 80% de renováveis, com ultrapassagem do predomínio fóssil por volta de 2050.
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No âmbito econômico já se instalou uma dinâmica tipicamente schumpeteriana, em que novos empreendedores são muito mais atraídos por potencial de inovações (principalmente digitalização e baterias), mais competitividade decorrente de custos declinantes e maiores ganhos de eficiência. Ficou nítido para os principais agentes econômicos que o futuro está do lado de energias limpas – biomassa, eólica, geotérmica, marítima e solar – e não dos poluentes – carvão, gás e petróleo – ou da velha e boa hidreletricidade.
Mais: tais agentes passaram a contar com entusiásticos anjos-da-guarda do lado das financeiras e seguradoras, cada vez mais assustadas com os riscos de que não seja realizável boa parte do capital já investido em fósseis. Chamam estes ativos de “stranded” (encalhados) e, frequentemente, usam o acrônimo SFFA ao se referirem aos “stranded fossil fuel assets”. Na prática, empresas que detêm ativos superavaliados e passivos subavaliados, que até poderão levar à falência grandes corporações energéticas que se atrasarem na adaptação. A quem essa tese parecer exagerada, é aconselhável uma consulta à análise do impacto macroeconômico dos SFFA publicada por grupo de nove renomados experts no periódico Nature Climate Change (Julho 2018, vol.8: 588-593).
Na dimensão política, o principal é que redes inteligentes, com seus sistemas descentralizados, trazem novidades favoráveis ao aprofundamento da democracia, em óbvio contraste com a centralização do padrão fóssil. E, em termos geográficos, todos os países têm potencial para desenvolver ao menos alguma das renováveis, ao contrário da disponibilidade restrita e altamente concentrada do petróleo e gás. O que também prescinde dos atuais esquemas de controle das rotas marítimas, com seus pontos de estrangulamento, tão críticos no caso do comércio global de petróleo e derivados. Fatores que tornam bem instigante o contraste entre as estratégias energéticas das duas maiores potências autoritárias, a russa e a chinesa.
Na vanguarda da “geopolítica da transformação energética” – à qual a respectiva agência internacional (Irena) acaba de dedicar relatório intitulado “Um Novo Mundo” – destaca-se justamente a China, acompanhada pelos EUA, por parte da União Europeia (principalmente Alemanha) e pelo Japão. Entre os outros grandes países, estão bem atrasados vários dos que deveriam ser os mais interessados em se livrar da dependência dos fósseis, como a Índia. Em número de novas patentes, estão juntos na rabeira a África do Sul, o Brasil e a Rússia. Piores que os Brics, só Arábia Saudita e Indonésia.
O atual arranque da transição energética surpreendeu, ao se mostrar menos subordinado ao referido duplo obstáculo (intermitência e governança), e ensejou debate científico que dá mais importância a quatro novos desafios: segurança cibernética como risco geopolítico, corte no fornecimento de eletricidade como arma geopolítica, possível nova corrida por recursos naturais e competição por materiais críticos (não apenas as terras raras).
Para Indra Overland, do Instituto Norueguês de Relações Internacionais, nenhum dos quatro desafios deverá causar séria dificuldade à já galopante transição energética. Examina-os como seus “quatro mitos emergentes”, na revista Energy Research & Social Science 49 (2019) 36-40. Se tiver razão, só mesmo um inverno nuclear poderia comprometer a atual marcha descarbonizadora.
Fonte: “Valor Econômico”, 30/01/2019