A Constituição é um pacto a partir do qual é possível coordenar, de forma pacífica, a competição política entre adversários, o exercício do governo e a alternância no poder. A sobrevivência da Constituição e da própria democracia está diretamente associada ao compromisso e à disposição dos principais atores políticos e institucionais a atuar em conformidade com as regras do jogo.
A crise do presidencialismo de coalizão, agravada por um forte conflito distributivo, com graves repercussões sociais, abriu espaço para o surgimento de um candidato à Presidência claramente hostil às instituições e valores constitucionais.
Tragicamente, este candidato foi vítima da lamentável radicalização política brasileira e da insanidade de um indivíduo. O atentado trouxe ao centro do picadeiro o seu vice —ainda mais hostil que o titular ao compromisso democrático—, que deixou claro que um autogolpe está no horizonte, assim como a substituição da Constituição de 1988 por uma carta que não será elaborada pelos cidadãos.
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Nesta semana, também testemunhamos uma nova incursão do comandante do Exército sobre o sistema político brasileiro, como havia feito ao advertir o Supremo Tribunal Federal sobre as eventuais consequências de autorizar a soltura do ex-presidente Lula.
Não devemos nos esquecer que a Constituição não conferiu às Forças Armadas a função de tutelar a cidadania brasileira ou o Supremo Tribunal Federal. Também é sempre bom lembrar que advertência vinda da caserna é ameaça.
O Brasil se meteu numa tremenda armadilha política e dela só poderá sair politicamente, se não quisermos fazer companhia à Venezuela, à Rússia ou à Turquia. Isso impõe aos democratas à direita, ao centro e à esquerda serem capazes de conceber uma ampla concertação em defesa da democracia, como foi feito na Espanha e no Chile durante os respectivos processos de transição.
Às instituições de aplicação da lei também cumpre cuidar para que suas prerrogativas não sejam utilizadas como armas políticas, trazendo ainda mais instabilidade ao sistema político.
Mais do que isso, é preciso ter clareza que a provável vitória de um candidato do campo democrático, no segundo turno, não será suficiente para estabilizar o sistema político. A mesma concertação eleitoral que nos livrar da ameaça autoritária terá a incumbência de levar a cabo um conjunto de reformas indispensáveis para que o Brasil possa recobrar uma trajetória de desenvolvimento, inclusão e estabilidade.
Sem que o Brasil seja capaz de remover os aspectos “extrativistas” de nossas instituições e fortalecer os mecanismos de “inclusão” —para utilizar a linguagem dos economistas Daron Acemoglu e James Robinson, em “Por Que as Nações Fracassam”—, estabelecendo um sistema político mais “responsivo” e íntegro e um sistema econômico mais eficiente e que beneficie todos os setores da sociedade, dificilmente conseguiremos viver em paz.
Não será simples encerrar o ciclo de retaliações políticas e institucionais que tomou conta do sistema político brasileiro a partir de 2013. Para muitos, a proposta de uma concertação democrática, num ambiente marcado por uma profunda polarização e ressentimento, pode parecer ingênua.
O fato, porém, é que a sobrevivência da democracia deveria ser o principal interesse das elites políticas, assim como das instituições de Justiça. Fora do regime democrático, essas elites não passarão de burros de carga dos autocratas de plantão.
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 15/09/2018