Ao proibir ontem a condução de testemunhas para prestar depoimento sob coerção, o Supremo Tribunal Federal (STF) reagiu aos abusos atribuídos à Operação Lava Jato, mas tomou uma decisão que terá o efeito oposto ao desejado.
Em duas ações movidas logo depois que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi levado para depor à força em março de 2017 – uma pelo PT, a outra pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) –, os ministros decidiram declarar inconstitucional o artigo 260 do Código Penal, que estabelece a condução à força de testemunhas.
Por seis votos a cinco, mantiveram a liminar de dezembro passado, em que o ministro Gilmar Mendes já proibira a prática, frequente na Lava Jato para evitar a prisão temporária de suspeitos, forçados como Lula a depor.
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Cinco ministros divergiram – Cármen Lúcia, Luís Roberto Barroso, Edson Fachin, Luiz Fux e Alexandre de Moraes. Argumentaram que a condução coerciva – que algum demônio do idioma consagrou em despachos e páginas da imprensa como “coercitiva” – não viola o direito de alguém permanecer em silêncio ou de não produzir provas contra si próprio.
“Em momento algum a imprescindibilidade do absoluto respeito ao direito ao silêncio e ao privilégio da não autoincriminação constitui obstáculo intransponível à participação compulsória dos investigados”, escreveu Moraes no voto que abriu a divergência do relator, Gilmar.
Para Moraes, há abuso em casos como o de Lula, levado a depôr à força sem ter antes sido intimado formalmente e se recusado a depôr. Mas não há abuso na condução coerciva após a recusa em prestar depoimento, já que a autoridade judicial detém a prerrogativa de autorizar o uso do poder do Estado para conduzir as investigações.
O ministro Fachin foi além. Considerou que, além disso, a condução coerciva pode ser considerada – e é usada na prática – como sanção mais branda que prisões temporárias ou preventivas. “Nada impede que o magistrado, após demonstrar o cabimento dessas medidas mais graves, as substitua pela condução coercitiva, caso constate que esta última é suficiente aos fins propostos”, diz Fachin em seu voto.
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Discordaram os ministros Rosa Weber, Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski, Marco Aurélio e Celso de Mello, além do relator Gilmar. Para todos eles, forçar alguém a ir depor, mesmo depois da recusa de uma intimação judicial, viola a liberdade de ir e vir e o direito fundamental de não produzir provas contra si mesmo, já que o próprio silêncio diante da autoridade poderia, em certas circunstâncias, ser usado como evidência.
O STF consagrou a visão conhecida como “garantista”, cujo princípio é preservar direitos e garantias individuais, independentemente dos efeitos práticos. Mas a realidade tem dado razão ao ministro Fachin.
Conduções coercivas têm sido usadas como forma de levar suspeitos ou réus a colaborar com a Justiça. Têm também sido decretadas com frequência sem intimação prévia, como no caso do ex-presidente Lula, de modo a pegar de surpresa investigados que poderiam destruir provas ou combinar versões mentirosas dos fatos com outros acusados.
Na impossibilidade de decretá-las, os juízes passaram a adotar a medida mais dura: a prisão temporária. Nos quatro primeiros meses deste ano, depois da liminar de dezembro em que Gilmar proibiu a condução coerciva, as prisões temporárias cresceram 32% – 195 mandados, ante 148 nos quatro primeiros meses de 2017, de acordo com levantamento do jornal “O Estado de S.Paulo”.
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Não há como negar os abusos de conduções coercivas na Lava Jato (aumentaram 300%), sobretudo nas decretadas sem intimação e recusa prévias. Mas, na prática, a decisão de ontem contribuirá apenas para aumentar ainda mais a quantidade de presos provisórios – efeito oposto ao pretendido por aqueles que se dizem preocupados com abusos do Estado e garantias aos direitos do cidadão.
Fonte: “G1”, 15/06/2018