Com a judicialização da política e a subsequente politização da Justiça, ganhou corpo nos meios jurídicos e políticos a oposição entre magistrados garantistas, que valorizam o habeas corpus como símbolo da liberdade individual e do direito dos cidadãos de não serem presos nas ruas por autoridades que não se identificam, e magistrados consequencialistas, para os quais esse recurso judicial não pode ser desfigurado, servindo como um fator disruptivo que trave a vida política do País, comprometa o processo eleitoral e abra caminho para a corrosão da legitimidade das instituições de direito.
Os garantistas alegam que, ao deixar de seguir o texto literal da lei para priorizar os efeitos das decisões judiciais no momento de tomá-las, dando assim vazão à vontade de atingir resultados desejados ou previamente determinados, os consequencialistas seriam basicamente punitivistas. Ou seja, recorreriam a interpretações extensivas, desprezando as intenções do legislador constitucional, passando por cima das garantias individuais e dos direitos fundamentais e desprezando o princípio constitucional do devido processo legal. Por seu turno, os consequencialistas justificam a opção por interpretações abrangentes em nome de um método mais realista para articular investigação, contraditório, celeridade e eficiência – método esse que propiciaria uma espécie de legitimação pelos resultados, dentre eles a moralização da vida pública.
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O controle da constitucionalidade
Ainda que primem por explicar pouco e convencer sem provar quase nada, esses adjetivos também ganharam presença na mídia. O denominador comum entre eles é duplo. Por um lado, está a questão da influência da opinião pública sobre os tribunais; mais precisamente, sobre a capacidade da Justiça de interpretar os sentimentos da sociedade e de se alinhar com ela, desde que isso não seja incompatível com a ordem constitucional. Por outro, está a questão da interpretação dessa ordem, que é composta por cerca de 180 mil leis federais e por um texto constitucional com elevado número de normas programáticas – aquelas que, por fixarem princípios éticos e sociais, não são autoaplicáveis, dependendo de outras normas para se viabilizarem.
No primeiro caso, as perguntas que podem e devem ser feitas são conhecidas. Até que ponto um juiz deve decidir conforme o clamor público, valendo-se de interpretações criativas do direito para avançar sobre as áreas de atuação do Legislativo e sobre as competências do Executivo? Inversamente, até que ponto esse juiz pode exercer um papel contramajoritário, interpretando estritamente as regras e respeitando rigorosamente o devido processo legal, com o objetivo de proteger minorias? No segundo caso, o problema do controle sobre a produção dos efeitos jurídicos do sistema legal e da avaliação das consequências das decisões judiciais também é conhecido. Quando um texto constitucional contempla normas principiológicas ou programáticas que se expressam por meio de conceitos vagos e indeterminados, isso não acaba inviabilizando o direito positivo como técnica, levando à perda da identidade sistêmica de todo o ordenamento jurídico?
Na sua versão mais simplificada, a da mídia e a dos meios políticos, essas indagações e os problemas por elas suscitados gravitam entre dois modos opostos de aplicação do direito. O primeiro entende que as normas constituem a premissa maior, dentro da qual o caso concreto configuraria uma premissa menor, possibilitando assim uma conclusão lógica e uma decisão judicial objetiva. No fundo, é como se o sistema jurídico fosse derivado de um conjunto geral de axiomas. O segundo modo parte da premissa de que as normas são apenas parâmetros para o intérprete – e quando elas são principiológicas ou programáticas, tendem a servir de justificativa posterior para uma escolha feita diante do caso e produzida por vias diferentes.
Na versão mais técnica, a dos teóricos do direito, as indagações e os problemas acima suscitados vão muito além da oposição entre aplicação mecânica e objetiva do direito e interpretação subjetiva. Nessa linha, o sentido da norma não está objetivamente fixado no texto, dependendo fundamentalmente do resultado da interpretação. A aplicação ou concretização da norma passa pela interpretação de seu texto, por um lado, e constitui-se de elementos que compõem o âmbito da norma, como as doutrinas e as teorias jurídicas, por outro. Doutrinas são construções com base em ideias de política legislativa e em pressupostos de normas ou de interesses por elas tutelados. Teorias propiciam o ambiente valorativo que envolve o direito positivo. Forjadas com base em textos de normas anteriores, que não são os mesmos envolvidos no caso sub judice, teorias e doutrinas são fonte do direito, na medida em que informam e influenciam a decisão de um litígio. Assim, texto e processo histórico estão em constante interação, o que faz com que a solução dada ao caso em julgamento não resulte do livre arbítrio do intérprete, mas de uma racionalidade condicionada pela experiência acumulada dos tribunais. Racionalidade essa que, nas instâncias superiores, permite aos seus magistrados equilibrar valores, princípios, finalidades, obrigações e permissões. A necessidade desse equilíbrio decorre, entre outros motivos, da dificuldade de se conjugar em termos lógico-formais uma ordem temporal concreta, na qual os cidadãos se encontram imersos em múltiplas redes de relações sociais, com os conceitos e as categorias normativas abstratas e atemporais do direito positivo. Diante dos conflitos entre pessoas, corporações e classes sociais, o que prevalece não é um a aplicação dedutiva das normas jurídicas, mas uma mescla inevitável entre legislação e adjudicação, entre direito e doutrina.
À luz dessas considerações é que se pode examinar o comportamento recente do STF, que tem surpreendido negativamente, dada a tendência de alguns ministros de exorbitar em matéria hermenêutica. Se a corte hoje intervém até mesmo no debate sobre estratégia econômica, o que faz da insegurança jurídica um entrave ao investimento produtivo e à retomada do crescimento econômico, isso não pode ser atribuído apenas a falhas técnicas nos métodos que têm sido utilizados para interpretação e aplicação das normas constitucionais. Decorre, também e acima de tudo, dos chamados males de composição – ou seja, dos problemas de falta de envergadura, competência e compostura de alguns de seus integrantes; e, também, do desconhecimento de filosofia e teoria do direito, disciplinas das quais a hermenêutica jurídica faz parte. Como disse a jornalista Rosângela Bittar, do “Jornal Valor”, se no passado o STF era integrado por catedráticos, parlamentares experientes e respeitados, presidentes dos Tribunais de Justiça dos Estados mais importantes e advogados que passaram pela política, ou seja, pessoas que emprestaram sua biografia à corte, hoje se tem o inverso – pessoas que foram para lá com o objetivo de melhorar a biografia.
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É sob essa luz que se deve examinar o embate entre juízes garantistas e consequencialistas. Por apego excessivo às normas com conceitos determinados e às interpretações restritivas, os primeiros não dão o devido valor à complexidade de sociedades cambiantes e heterogêneas, como a brasileira. Prendem-se a uma racionalidade lógico-formal insuficiente para viabilizar uma engenharia jurídica eficaz baseada em regulamentações gerais. Esquecem-se de que as palavras nos textos legais não são cristais transparentes e imutáveis, mas a pele que encobre um pensamento vivo e que varia de tamanho e conteúdo conforma circunstância e o tempo em que seja utilizada, como diziam os realistas americanos já no século 19. Por apego excessivo às normas programáticas, assumindo a moralidade pública como bandeira, os segundos parecem não apreender que os princípios jurídicos exigem um mínimo de organização e sistematização, teimando assim em analisar os litígios em termos dicotômicos e maniqueístas, como se as partes representassem o bem e o mal, a honestidade e a corrupção. Confundem hermenêutica jurídica com escolhas voluntaristas, certos de que estão agindo com o guardiões da moral coletiva.
Para escapar dos equívocos cometidos por garantistas e consequencialistas, uma saída é compreender que o direito não é algo pronto, acabado em caráter definitivo no momento de sua positivação, e que depende somente de uma única interpretação. Acima de tudo, ele é uma construção que tem como base a experiência e não a lógica. Como dizia Oliver Wendell Holmes Jr, a grande referência do realismo jurídico americano, “as necessidades sentidas em todas as épocas, as teorias morais e políticas que prevalecem, as intuições das políticas públicas, claras ou inconscientes, e até mesmo os preconceitos com os quais os juízes julgam, têm importância muito maior do que silogismos na determinação das regras pelas quais os homens devem ser governados”. Em outras palavras, “o direito incorpora a história do desenvolvimento de uma nação através dos séculos e não pode ser tratado como se compreendesse tão somente axiomas e corolários de livros de matemática”. Para apreender o que é o direito, “deve-se saber o que ele tem sido e qual a tendência que há de se transformar; deve-se consultar alternativamente a história e as teorias jurídicas existentes” – concluía.
Garantismo versus consequencialismo é, assim, um debate determinado mais por razões políticas conjunturais do que por fatores jurídicos estruturais, e que passa ao largo dos problemas gerados pelo fosso entre as leis em vigor e os valores e as tensões sociais emergentes. É um debate que costuma ser travado em países que nunca tiveram juristas do porte de um Oliver Wendell Holmes Jr. como base para uma reflexão não apenas sobre as técnicas de interpretação das leis, mas, também, sobre as funções da magistratura – mais precisamente, sobre o desafio de ajustar sua função a uma sociedade em mudança e em crise.
Fonte: “Jota Info”, 09/09/2018
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