A escultura do artista dinamarquês Jens Galschiot, denominada “A sobrevivência dos opulentos”, parece refletir com precisão a Justiça brasileira. Uma senhora pesada, com uma pequena balança desequilibrada em suas mãos, sentada sobre os ombros de um cidadão magérrimo que simboliza o povo, explorado por quem deveria lhe defender. É a Justiça dos privilégios, do foro Supremo, dos recursos infinitos, das prescrições e da impunidade.
No Brasil, é difícil descobrir a corrupção pois, quase sempre, não há extratos bancários, recibos, notas fiscais ou registros em cartórios. Tudo acontece no submundo, nos porões dos palácios, sítios e coberturas, nas malas, meias e cuecas, nas saídas das pizzarias e nas simulações de empréstimos e vendas de gado. As descobertas acontecem às vezes por acaso, tal como aconteceu com a Lava-Jato, quando a investigação sobre um doleiro e uma casa de câmbio, em um posto de gasolina de Brasília, deu no que deu.
Quando a corrupção é descoberta, é difícil comprová-la. No início das investigações, todos são inocentes: não sabiam, não conheciam, e as suas contas de campanha foram aprovadas pelo TSE. Não custa lembrar que o TSE está analisando, neste ano de 2018, as contas dos partidos políticos de 2012!!!
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O dinheiro roubado roda o mundo, movimentado em milhares de contas bancárias de empresas fantasmas em paraísos fiscais. Só a Lava-Jato já fez aproximadamente 400 pedidos de cooperação dirigidos a cerca de 50 países. Internamente, o Banco Central e a Comissão de Valores Mobiliários adquiriram maior poder para punir em valores expressivos as condutas lesivas ao sistema financeiro e ao mercado de capitais. Agora, está mais difícil esconder a dinheirama e até apartamentos são alugados para hospedar o roubo.
Quando a corrupção é comprovada, é difícil evitar que os processos não sejam anulados ou interrompidos. Há advogados famosos e caríssimos justamente pela capacidade de descobrir brechas nos inquéritos e nos processos com o intuito de interrompê-los. As interrupções beneficiam também os políticos, com a anuência do STF e do Legislativo. Como o STF lavou as mãos, o corporativismo dos parlamentares impede cassações e a continuidade das investigações. Para os afogados com foro privilegiado, o STF é um colete salva-vidas e o Legislativo, uma boia.
Quando os processos não são interrompidos, a Justiça brasileira é tão lenta que grande parte deles prescreve. Segundo pesquisa do ministro do STJ Rogério Schiett, em apenas dois anos, entre setembro de 2015 e agosto de 2017, nada menos do que 830 ações penais prescreveram. Apenas com a tramitação de ações contra réus “ilustres”, os brasileiros descobriram a quase infinita possibilidade de recursos que levam à impunidade. Até embargos dos embargos, o absurdo do absurdo…
Quando os processos não prescrevem, as penas são baixas e os corruptos, soltos rapidamente. O cidadão brasileiro que passou mais tempo sendo “punido” foi o goleiro Barbosa, titular da Copa de 1950, que tomou um gol defensável de um uruguaio, o que levou o Brasil a perder o título. Barbosa faleceu em abril de 2000 e, como ele mesmo dizia, penou por 50 anos!
Os corruptos, com bons advogados, cumprem um sexto da pena em regime fechado e “progridem” para o semiaberto e para o aberto, quando não ficam em prisão domiciliar nas casas milionárias que adquiriram com o dinheiro desviado. Vão para casa porque têm idades elevadas e/ou para cuidar e dar “bons exemplos” aos filhos. E sem tornozeleiras eletrônicas, que estão sempre em falta. Os que ficam nos presídios saem nos indultos de Natal, quando não são indultados definitivamente com a extinção de punibilidade. O indulto é, não raro, um insulto.
Segundo Carlos Fernando dos Santos Lima — um dos procuradores mais combativos da Lava-Jato, juntamente com Deltan Dallagnol — semanalmente os advogados tentam de tudo: “A soltura de réus presos, até mesmo do pai de afilhada de casamento; a postergação do momento de prisão para o dia de São Nunca ou um pedido de vistas para adiar a redução do foro privilegiado. A novidade, recente, é a guerra de decisões dentro da própria Corte. Um ministro determina a prisão do réu e, então, o seu advogado vai protocolando sucessivos habeas corpus, que caem com um ministro depois do outro, até cair com quem o solte. Parece uma aberração, e é.”
Enfim, se ainda sobra alguma pena a ser cumprida por um rico criminoso de colarinho branco, frequentemente ele adoece e também vai para casa. Esse é o ciclo da impunidade visualizado na escultura de Galschiot.
Fonte: “O Globo”, 17/04/2018