Se tudo correr como programado, termina hoje, com o voto do ministro Gilmar Mendes, o julgamento do Supremo Terminal Federal (STF) a respeito do foro privilegiado – ou, como preferem os puristas, foro por prerrogativa de função.
Pela legislação brasileira, 58.660 cidadãos têm o direito de ser julgados em tribunais especiais, de acordo com um levantamento do jornal Folha de São Paulo. Tal contingente inclui do presidente da República ao defensor público de Taboão da Serra – passando por vereadores, oficiais das Forças Armadas, juízes, procuradores, prefeitos, governadores e, naturalmente, deputados e senadores.
O processo em julgamento no STF examina apenas o que fazer em relação aos 594 deputados federais e senadores. É provável que a decisão tenha implicação para os demais cargos, mas ela não será automática. Dependerá de decisões posteriores da Justiça.
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Sete dos ministros já votaram em favor da nova interpretação proposta pelo relator, o ministro Luís Roberto Barroso. Ela prevê a manutenção do foro especial apenas para crimes cometidos no cargo, em função de atividades relativas ao cargo.
A divergência, iniciada pelo ministro Alexandre de Moraes, afirma que tal critério abrirá margem a interpretações subjetivas quando casos concretos vierem a julgamento. Ele propôs que todo crime atribuído a parlamentar seja julgado no STF a partir do momento da diplomação, até o fim do mandato, não importando a natureza.
O argumento vitorioso de Barroso atém-se ao princípio do foro especial: ele existe para proteger o cargo de ingerências políticas. O argumento de Alexandre é de ordem prática: a decisão poderá tornar os julgamentos ainda mais complexos e morosos.
Ser julgado no STF é considerado um privilégio justamente por que, na visão predominante, lá os processos costumam demorar mais, e os crimes prescrevem.
Um estudo da FGV-Rio, tão citado quanto criticado, constatou, com base na análise de 2.963 inquéritos e 822 ações penais entre 2002 e 2016, que o tempo médio de tramitação até o julgamento definitivo caiu para os primeiros (de 1.297 para 797 dias), mas cresceu num movimento constante para as segundas (de 65 para 1.377).
O estudo levantou casos em que um processo espera mais de quatro anos por providências do relator. Numa amostra de casos entre 2012 e 2016, verificou que menos de 6% começavam e terminavam no STF. Apenas 5,44% preenchiam as duas condições propostas por Barroso. O fim do foro representaria, portanto, um alívio na carga do tribunal, concebido como corte constitucional, não penal.
Em artigo no site Consultor Jurídico, o jurista Lenio Streck criticou o estudo por não determinar o período de demora que cabe ao inquérito policial, ao oferecimento da denúncia pelos procuradores e ao STF especificamente. Streck afirma que as regras para prescrição mudaram em 2010, dificultando as manobras protelatórias e diz que a própria natureza do julgamento criminal no STF é distinta, feita em instância única por um colegiado de juízes.
Num levantamento entre o primeiro semestre de 2015, quando já estavam consolidados a atual estrutura de julgamentos em turmas e o uso de juízes auxiliares, e o início de 2017, ele verificou que 18 de 42 ações penais autuadas já haviam sido julgadas – num prazo em torno de 800 dias, eficácia bem superior à verificada no estudo da FGV-Rio.
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Num ponto, todos estão de acordo: as idas e vindas entre as instâncias judiciárias contribuem para dilatar a duração dos processos. Barroso sugere, em seu voto, que o STF encerre todos os processos cuja instrução já esteja concluída, mesmo que o parlamentar perca o mandato ou adquira foro noutra instância do Judiciário.
Esse critério valeria para os processos da Operação Lava Jato que lá tramitam? Dependerá de como o relator, ministro Edson Fachin, interpretar as novas condições aos processos. É provável que ele envie a instâncias inferiores aqueles cujas acusações digam respeito a crimes cometidos fora do cargo hoje ocupado.
Para novos processos por corrupção, a tendência é haver menos controvérsia – embora o ponto levantado pela divergência do ministro Alexandre prometa doravante pairar sobre qualquer decisão, abrindo brechas para advogados manobrarem em favor de seus clientes.
É preciso acabar com os absurdos do foro privilegiado no Brasil. Ele protege criminosos e promove a impunidade. Mas a decisão de hoje não fará isso, ao menos não em definitivo. O melhor seria o Congresso Nacional emendar a Constituição para resolver a questão em toda a sua extensão. Infelizmente, por causa da intervenção federal no Rio de Janeiro, ele está impedido de examinar emendas constitucionais.
Fonte: “G1”, 03/05/2018