O ex-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) Carlos Velloso não concordou com a decisão, por 3 a 1, da Segunda Turma da Corte anulando a condenação do ex-presidente do Banco do Brasil e da Petrobrás Ademir Bendine. “Nem o Código Penal nem a lei da colaboração premiada fazem esta distinção que o Supremo adotou. Penso que não é possível o tribunal, invocando o direito de defesa, ampliar norma processual”. Especialista em combate à corrupção, o professor de Direito da USP Modesto Carvalhosa revelou idêntico entendimento no seu perfil no Twitter: “Este precedente, aberto graças à ministra Cármen Lúcia, a Gilmar Mendes e Lewandowski, foi apenas uma desculpa esfarrapada para dar argumentos aos advogados de Lula”. E o desembargador Walter Maierovitch ironizou: “Só de ficar atento ao voto de três ministros do Supremo Edson Fachin teve torcicolo”.
Tiradas de humor à parte, o assunto é sério. Já há algum tempo o STF vem brincando de legislar à revelia do Congresso, instituição eleita para representar o cidadão, detentor de todo o poder, de acordo com a Constituição. Diante da informação repetida à exaustão por ilustres jurisconsultos, citados ou não no parágrafo acima, salta aos olhos de qualquer um a falta de algum amparo ou mesmo da mais criativa interpretação da letra da lei para manter a decisão. Não há previsão na Constituição, no Código Penal nem na lei das colaborações premiadas que justifique o despautério em questão.
Tida como a primeira proclamação de tribunal superior a desautorizar sentença do ex-juiz da Lava Jato Sergio Moro, a anulação da condenação constrange também o Tribunal Federal da 4.ª Região (TRF-4), em Porto Alegre, e o Superior Tribunal de Justiça (STJ), em Brasília, que a mantiveram com ênfase. Além disso, despreza a solução de conciliação proposta pelo presidente do STF, Dias Toffoli, de alterar jurisprudência resolvida três vezes em 2016 de permitir início de cumprimento de pena para após a terceira instância.
Enquanto este se faz de surdo ao não se referir mais à própria proposta, ao que parece, esquecida, novos ingredientes de soberba, indiferença e autismo acabam de ser noticiados. Josias de Souza, comentarista do Jornal da Gazeta e colunista do UOL, resgatou despacho de abril de 2018 em que o relator da Lava Jato no STJ, ministro Félix Fischer, destacou a generosidade do julgador ao atender a pedido de segundo depoimento do réu, cuja defesa alegou ser necessário por ele se ter negado a falar no primeiro. Ao aceitar a demanda de Alberto Toron de ter sido, então, negado ao réu pleno direito de defesa, o trio pródigo protagonizou chicana mais absurda que o arquivamento da Operação Castelo de Areia, em 2009.
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Essa descoberta não foi, contudo, a única revelação recente. Outra veio à luz no fim da semana passada, superando o episódio em que penoso trabalho de investigação naufragou com o cancelamento das muitas provas recolhidas após o argumento da defesa da acusada, a empreiteira Camargo Corrêa, de que a denúncia original havia sido anônima. Agora, dez anos depois, o ex-ministro da Fazenda de Lula e da Casa Civil de Dilma, Antônio Palocci, contou à Polícia Federal (PF), em delação premiada, o que já se supunha. A chicana – “dificuldade criada no curso de um processo judicial civil, pela apresentação de um argumento com base num detalhe ou num ponto irrelevante” (Houaiss, pág. 699) – desconsiderou outra informação que destrói a hipótese de prejuízo à defesa. No UOL o mesmo Josias informou que não houve acusações novas nas considerações finais de delatores, às quais Bendine alegou não haver tido acesso antes da condenação. “Preocuparam-se em consolidar as próprias revelações, credenciando-se para usufruir recompensas judiciais como a redução da pena.” Conforme o relato, esse foi o caso de Marcelo Odebrecht, que chegou a ficar dois anos na cadeia.
Meu pai, José de Anchieta Pinto, que foi chefe político no sertão da Paraíba dos anos 50 a 70, repetia sempre em casa o chavão segundo o qual “de barriga de mulher, bumbum de bebê e cabeça de juiz é impossível saber o que pode sair”. Naquele tempo podia ser. Hoje a tecnologia do ultrassom revela detalhes extraordinários, muito além do sexo, dos embriões no ventre materno. Motivações de magistrados continuam sendo, contudo, imunes à mais sofisticada tecnologia. Se Cármen, Gilmar e Lewandowski não confidenciarem a ninguém capaz de revelar seu segredo, jamais se saberá se, de fato, como vituperou Carvalhosa, a anulação da sentença do corrupto menor Bendine terá sido apenas um pretexto para libertar o condenado por corrupção e lavagem de dinheiro, por 8 a 0, Lula da Silva, que calça coturno mais alto. Certo, porém, é que sempre haverá um “pirréps”, como dizia o poeta do absurdo (e é de absurdo que tratamos) Zé Limeira em cantorias na serra de Teixeira.
O jurista pernambucano José Paulo Cavalcanti Filho, ex-ministro da Justiça, ex-membro da comissão de notáveis que fez um projeto para a Constituição de 1988, que a Constituinte não levou em conta, levantou uma dúvida sobre eventuais benefício do precedente Bendine para Lula. E o “pirréps” tem nome: preclusão, “impedimento de usar determinada faculdade processual civil (…) pela não utilização dela na ordem legal” (Houaiss, pág. 2.281). Ou seja: a tradição do Direito não permite que o advogado recorra, após a sentença, a argumentos não usados no decorrer do processo. No popular: foi para Portugal, perdeu o lugar. Seja por civil não ser penal, seja por Gilmar Mendes ir sempre para Portugal sem nunca perder o lugar no “colendo colegiado”, ainda restará uma esperança de utilizar o efeito Bendine para mandar o ex-presidente da cela de “estado-maior” em Curitiba para seu lar doce lar no ABC.
A Lava Jato não tem mais plenário a favor. Cármen Lúcia será o sexto voto da vitória dos “garantistas” da impunidade.
Fonte: “O Estado de São Paulo”, 4/9/2019