Janaina é uma mulher pobre, em situação de rua, e que tem filhos. Por isso um membro do Ministério Público entendeu que ela deveria ser esterilizada.
Como Janaina não consentiu ou voluntariamente se prontificou a realizar a cirurgia, o promotor propôs duas ações judiciais contra ela e o município de Mococa, com o objetivo de constrangê-la a realizar um procedimento de esterilização compulsória.
O juiz, sem sequer realizar uma audiência, nomear um defensor, ou exigir documentos que comprovassem o seu consentimento, determinou que a mulher fosse conduzida coercitivamente à cirurgia.
Quando o recurso do município chegou ao Tribunal de Justiça de São Paulo, a mutilação já havia ocorrido.
O caso é escatológico. Em primeiro lugar o promotor utilizou-se de uma ação civil pública, que é um instrumento voltado a proteção de direitos difusos, coletivos ou individuais indisponíveis, para destituir uma pessoa de seu direito à dignidade e à integridade, além de constranger o município a praticar um ato manifestamente ilegal.
Basta lembrar que Constituição expressamente proíbe que o Estado brasileiro interfira “coercitivamente” na decisão sobre a paternidade (artigo 226, parágrafo 7º.), além do que, a lei 9.263/96, que regula o planejamento familiar, veda o controle de natalidade que tenha natureza demográfica.
Também causa perplexidade o fato do magistrado, dada a condição de vulnerabilidade de Janaina, não ter nomeado um curador especial, no caso um defensor público, que representasse os seus interesses em juízo.
Conforme expresso no acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo, a decisão que determinou a cirurgia foi proferida sem que Janaina fosse ouvida ou defendida; e sequer uma audiência fosse realizada.
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Para coroar esse processo bizarro, a Justiça de primeiro grau determinou que Janaina fosse conduzida “coercitivamente” ao procedimento cirúrgico.
Aqui cumpre lembrar que essa é uma medida prevista no Código de Processo Penal, apenas para testemunhas ou acusados que se neguem a atender intimação.
Aliás, por decisão liminar do Supremo, essa medida de natureza processual penal encontra-se suspensa (ADPF 444). Nada disso foi empecilho para que o magistrado empregasse a condução coercitiva para impor a supressão de um direito fundamental dessa mulher.
A esterilização coercitiva, com finalidades eugênicas e apuração da raça, foi largamente empregada pelo regime nazista. A China fez uso da esterilização coercitiva em massa para conter a natalidade. Os Estados Unidos a empregavam para punir criminosos.
Mesmo no Brasil, como foi apontado por uma comissão parlamentar de inquérito, ainda em 1991, havia tolerância com políticas de esterilização coercitiva em massa, com finalidades demográficas.
Esse caso, ainda que possa ser considerado uma aberração jurídica, oferece uma amostra do impacto perverso que a profunda e persistente desigualdade causa sobre o reconhecimento das pessoas como sujeitos de direitos.
Embora o princípio da dignidade determine que todos devam ser tratados com igual respeito e consideração, a miséria e a marginalização parecem tornar largas parcelas de nossa sociedade moralmente invisíveis no dia a dia, perdendo, na realidade, sua condição de sujeitos de direitos.
Que a contundente decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo, que infelizmente não pode fazer o tempo voltar para Janaina, sirva de alerta e inspiração para quem têm por responsabilidade proteger direitos e não os violar.
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 09/06/2018