Não me surpreende que a profunda crise política em que submergimos após a crispada eleição de 2014 tenha se deslocado para o colo do Supremo Tribunal Federal.
O clima de forte desconfiança entre os políticos que participaram do momento constituinte de 1987-88 levou a que se transferisse ao Supremo um papel central na tutela da própria política, assim como das inúmeras promessas e interesses entrincheirados no pacto de 1988. Ao tribunal foram concedidos poderes que, na maior parte das democracias constitucionais, estão distribuídos entre as diversas esferas do sistema de Justiça. Aqui ficou tudo concentrado numa espécie de “liga da Justiça”.
Ao Supremo foi conferido o papel essencial de corte constitucional, em que tem por missão resolver questões jurídicas moralmente difíceis, politicamente complexas e com grande impacto econômico e social.
Leia mais de Oscar Vilhena
A guerra dos estamentos
Marielle Franco
Lealdade constitucional
Também ficou o Supremo com a função de tribunal de recursos, responsável por rever anualmente milhares de decisões tomadas por nada menos do que 90 tribunais federais e estaduais.
Por último, ao Supremo foi atribuída função de tribunal especial de primeira instância, em que analisa a validade dos atos praticados por altas autoridades, assim como julga criminalmente dos membros do parlamento ao presidente da República.
Enquanto vivemos um ciclo virtuoso de nossa democracia, pautado na alta capacidade de coordenação política do presidencialismo de coalizão, o Supremo conseguiu se equilibrar nas suas múltiplas tarefas. É fato que pouquíssimo fez no campo da aplicação da lei penal a políticos corruptos. Ao menos até o escândalo do mensalão.
A vida jamais foi tranquila, mas teve inclusive capital reputacional para decidir temas constitucionais polêmicos, como ação afirmativa, lei de anistia, união civil entre pessoas do mesmo sexo, cláusula de barreira, sem jamais ter a sua autoridade desafiada. Acertando ou errando.
Com o aprofundamento da crise econômica, com fortes repercussões sociais, somada a um escândalo de corrupção sem precedentes, e o consequente debacle da classe política, o Supremo foi tragado para o centro da crise. Teve que supervisionar o conturbado impeachment da ex-presidente, afastar o presidente da Câmara, tirar da linha sucessória um presidente do Senado e solicitar autorização à Câmara para processar criminalmente o presidente da República.
Além disso, tem tido que lidar diariamente com os impactos diretos da Lava Jato sob sua jurisdição, que vão do julgamento de espinhosos habeas corpus, como o do ex-presidente Lula, até o processamento de dezenas de processos criminais contra parlamentares. O senador Aécio Neves parece ser o próximo. Dado o largo espectro dos políticos abatidos pela Lava Jato, o Supremo tornou-se uma esfera estratégica a ser controlada pela classe política, que evidentemente está buscando explorar a seu favor as idiossincrasias e fissuras do tribunal. Seu desafio é superar a pecha de seletivo.
Terminada a borrasca, certamente seremos obrigados a revisitar as atribuições do Supremo. Acabar com o foro privilegiado seria um primeiro feito. Retirar do seu cotidiano milhares de recursos, agravos e habeas corpus, também seria indispensável para que o Supremo pudesse exercer, com o devido cuidado e serenidade, a função de corte constitucional, que lhe é essencial.
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 14/04/2018