O decano do Supremo Tribunal Federal, ministro Celso de Mello, deu uma espécie de freio de arrumação nas discussões sobre o instituto do habeas corpus, mostrando que nem tudo é preto ou branco. Ele, que votara a favor do recebimento do pedido da defesa do ex-ministro Antonio Palocci, ficando com a minoria, ontem ajudou a alargar a maioria negando o mesmo habeas corpus.
Nesse embate entre garantistas e consequencialistas no plenário do Supremo, que abordei na coluna de quarta-feira, surgiu uma luz de serenidade, que muitos ministros já perderam. Além de dizer que não há ilegalidades na decisão do juiz Sergio Moro, que decretou a prisão preventiva do petista em setembro de 2016, no âmbito da Lava-Jato, Celso de Mello lembrou também que o Italiano, como Palocci era identificado na planilha de propinas da Odebrecht, continuou a esconder propina depois de ser levado para a cadeia.
Ressalvando, como bom garantista, que “prisão antecipada não pode representar punição”.
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Os ministros Marco Aurélio Mello e Gilmar Mendes usaram palavras duras em seus votos, realçando a diferença de visão do Direito entre os grupos e, mais que isso, a frustração de estarem em minoria permanentemente. Essa distância de pontos de vista sobre a aplicação das leis e da Constituição é tão grande que as duas Turmas do STF são conhecidas internamente como “Câmara de gás” e “Jardim do Éden”. A primeira, formada pelos ministros Marco Aurélio; Luiz Fux; Rosa Weber; Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes é acusada de ser muito rigorosa e, segundo Gilmar Mendes, é uma máquina de não conceder habeas corpus, o que seria um sinal da tendência autoritária de seus componentes. Geralmente, o ministro Marco Aurélio sai derrotado. Na segunda turma, os ministros Edson Fachin; Celso de Mello; Gilmar Mendes; Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli são considerados condescendentes com os réus da Operação LavaJato. O ministro Edson Fachin perde.
Mais uma vez no plenário se viu, ontem, o embate entre as duas visões que, na palavra de um dos ministros, confronta na verdade os que querem manter o status quo e os que querem uma mudança no país. Ao votar pela liberdade de Palocci, Marco Aurélio Mello salientou que ele foi um “quase candidato à Presidência da República”, e criticou os que negavam o habeas corpus, que fariam parte do que chamou de “cultura do atraso.” Chegou a repetir seu mantra de que vivemos “tempos estranhos”, que comparou à “era das trevas” e à “inquisição do século 21”.
Já Gilmar Mendes foi além, comparando o momento aos tempos do AI-5 da ditadura militar, e voltou a criticar os abusos das prisões provisórias, que o ministro Lewandowski, em aparte, classificou de “cultura do encarceramento”. O ministro Gilmar Mendes chegou a comparar a uma tortura a prisão alongada em Curitiba, repudiando-a como se fosse “uma perversão” que serve para obrigar os presos a fazerem a delação premiada. Um comentário que não corresponde aos fatos, pois no balanço de quatro anos da Operação Lava-Jato foi demonstrado que 84% das delações ocorreram com o autor em liberdade. Mais uma vez ele fez questão de sublinhar suas críticas com gestos largos e voz alterada, afirmando que ninguém lhe poderia dar lição de combate à corrupção.
Como não podia deixar de ser, o ministro Luís Roberto Barroso rebateu as críticas de Gilmar Mendes, afirmando que o que existe é um combate à “cultura da procrastinação”. Esse é um dos pontos centrais que está em discussão: a protelação da aplicação da pena, até que o trânsito em julgado favoreça a impunidade. O que ele quis dizer, vocalizando o pensamento que hoje tem maioria no Supremo, é que é necessário ver as consequências de adotar uma decisão; uma postura desconectada da realidade pode ser, na prática, desastrosa. Por exemplo: o primeiro político a ser julgado no Supremo em consequência da Operação Lava-Jato, depois de quatro anos, será o deputado federal Nelson Meurer, pela Segunda Turma. Teremos um exemplo prático dessa divisão de pensamentos sobre a aplicação do Direito.
É possível definir essa disputa com dois ditados latinos, muito conhecidos dos advogados. Os formalistas seguem o que diz que “Cumpra-se o Direito, mesmo que o mundo pereça”. Já os consequencialistas preferem o que diz que manter a ordem pública é a lei suprema. Respeitar a Constituição ao pé da letra ou interpretá-la, muitas vezes alargando seu alcance, qual a melhor opção?
Fonte: “O Globo”, 13/04/2018