Neymar Jr. sofreu todo tipo de crítica por ter chorado em campo. Imaturo, infantil, exibido, sem espírito de liderança – e por aí afora. Nas redes sociais, tentou se fazer de vítima. Entrará em campo sob pressão contra a Sérvia, num jogo em que tentará redimir sua imagem e nosso futebol.
As críticas a Neymar revelam como o brasileiro é seletivo em suas condenações e ciclotímico em seu humor. Bastará ele desencantar e reencontrar o caminho do gol – e ninguém põe em questão que Neymar é um craque – para voltar a ser heroi nacional.
O problema, já escrevi outras vezes, não está na imaturidade de Neymar – é humano chorar ou tentar valorizar o próprio sofrimento. Está na reação do brasileiro. Critica o choro, mas é incapaz de condenar com a mesma veemência o comportamento ético questionável de Neymar em momentos decisivos de sua carreira.
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Desprezamos no futebol atitudes que somos incapazes de aceitar noutras esferas. Duvida? Pois compare então o caso de Neymar ao do ex-procurador Marcello Miller, denunciado esta semana por ter feito jogo duplo na negociação do acordo de delação premiada do grupo J&F, cujos benefícios depois foram anulados.
De acordo com a denúncia, Miller ainda não se desligara da Procuradoria Geral da República (PGR) quando começou a orientar Joesley Batista e companhia na negociação do acordo. Em fevereiro de 2017, comunicara sua saída à PGR, mas não a efetivara para não perder dinheiro (dias de férias acumulados a que tinha direito).
Desligou-se oficialmente só em abril e, pelo período em que, ainda como contratado da PGR, prestou serviços ao escritório que negociava com a mesma PGR a delação da J&F, recebeu R$ 700 mil, diz a denúncia. Havia óbvio conflito de interesse. Mesmo que tivesse mantido a distância necessária da PGR entre fevereiro e abril, jamais poderia trabalhar para Joesley no período. Com razão, responderá na Justiça pelo que fez.
E Neymar com isso? Pois, em 2011, na final do Mundial de Clubes da Fifa, o craque entrou em campo ainda com a camisa do Santos contra o Barcelona. Naquele dia, já havia acertado sua transferência para o Barça, e a empresa de seu pai já embolsara € 10 milhões como sinal pela transação. O Barça venceu por 4 a 0.
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Pouco importa se Neymar não fez corpo mole em campo, nem se jogou bem ou mal. Havia, como no caso de Miller, um conflito de interesse evidente. Ninguém pode receber dinheiro de um clube contra o qual jogará. Precisa levar a questão a público e se declarar impedido.
A transferência para o Barcelona foi cercada de outras suspeitas. De acordo com uma investigação do Ministério Público espanhol, custou ao clube € 86,2 milhões, 66% a mais do que o declarado – e Neymar passou a enfrentar problemas com o Fisco. Num lance incompreensível fora dos gramados, obteve na Receita Federal uma negociação para lá de vantajosa, que reduziu a multa a pagar de R$ 188 milhões para R$ 8,7 milhões. Na Espanha, o processo ainda não terminou.
Sua transferência do Barça para o Paris Saint-Germain, financiada pelo governo do Catar, também foi cercada de controvérsia, embora não tenha havido jogo duplo, nem – até agora – nenhuma denúncia de sonegação fiscal (leia mais a respeito aqui).
Por que aceitamos em Neymar a mesma atitude que condenamos em Miller? Deveríamos ser ainda mais exigentes com os padrões éticos de nossos jogadores de futebol. São, afinal, herois nacionais e exemplos para as crianças. Mas não. Costumamos tolerar neles todo tipo de atitude fora do gramado, desde que consigam redimir seus erros em campo. Eis um mistério da alma brasileira.
Não é assim noutros países. De Muhammad Ali a Magic Johnson, os maiores esportistas americanos sempre se preocuparam com a imagem que projetam à sociedade. Caem em desgraça quando são flagrados em transações suspeitas, como ocorreu com Neymar.
Fonte: “G1”, 27/06/2018