A discussão sobre o futuro do Mercosul tornou-se urgente. Não se trata de um debate no vácuo ou teórico. Há uma situação real que tem de ser examinada à luz dos interesses concretos do governo e do setor privado.
Essa discussão tem necessariamente de levar em conta as recentes mudanças políticas e econômicas resultantes das últimas eleições no Brasil, com tendência liberal na economia, e a vitória do centro-esquerda na Argentina. O fim do isolamento do Mercosul, com a conclusão das negociações com a União Europeia (UE) e a Efta, mais as consequências de eventual redução da Tarifa Externa Comum (TEC), da ampliação da rede de acordos comerciais (incluído um improvável acordo com os EUA) e da repercussão da crise ambiental na Amazônia sobre a ratificação do acordo com UE e Efta, não podem ser descartados. Devem-se também ter presente as transformações globais que apontam para uma mudança do eixo econômico para a Ásia e a guerra comercial entre os EUA e a China.
Nas últimas reuniões presidenciais do Mercosul, na Argentina, e na semana passada no Brasil, os governos tomaram a decisão de adotar medidas para fazer do Mercosul novamente um instrumento de abertura comercial, conforme previsto no Tratado de Assunção. As principais decisões tomadas pelos presidentes reforçaram o bloco e enfocaram as regras econômicas, o enxugamento das instituições e a facilitação do comércio. O Brasil apresentou estudo para permitir uma rebaixa da TEC média (hoje de 14%) para níveis que sejam similares à média global, o que, sem acordo, ficou de ser retomado no próximo ano com o novo governo de Buenos Aires.
A política econômica e comercial do novo governo argentino – antes mesmo de ser conhecida – passou a ser uma preocupação do governo brasileiro pela possibilidade de que medidas protecionistas de nossos hermanos sejam contrárias às medidas de abertura da economia e de ampliação da negociação externa do Mercosul.
Sem entrar no exame das consequências comerciais para o Brasil, a simples cogitação de mudanças profundas no funcionamento do Mercosul pareceriam desconhecer as regras incluídas no Tratado de Assunção, que criou o bloco regional, e em outros atos relevantes. Modificações substantivas do seu funcionamento não entram em vigor imediatamente, nem podem ser tomadas unilateralmente por nenhum membro do bloco, sob pena de representar o descumprimento do Tratado de Assunção. Em termos concretos, essas modificações terão de ser aprovadas por todos os países-membros, depois de ratificada a modificação do tratado. A redução da TEC, se não aprovada por todos os países-membros, e a entrada em vigor do acordo com a UE, na medida em que os Congressos do Mercosul o ratificarem, poderão levantar dúvidas sobre a necessidade de alterar o tratado para serem implementadas.
Torna-se, assim, difícil analisar o futuro do Mercosul levando em conta tantas e tão importantes variáveis políticas e econômico-comerciais. A vontade política que permitiu a criação e a evolução do subgrupo regional até aqui deve prevalecer. É pouco provável – apesar da retórica em Brasília e Buenos Aires – que o processo de integração seja substancialmente alterado na direção contrária ao real interesse nacional, tanto do ponto de vista econômico-comercial, quanto de política externa.
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O determinismo geográfico da vizinhança é um fator que o governo brasileiro terá de levar em conta, acima das considerações ideológicas. Brasil e Argentina já passaram por crises sérias, superadas por pragmatismo e interesses concretos. No momento não existe uma crise com a Argentina. Há diferenças ideológicas e provocações de ambos os lados, que não podem contaminar o relacionamento civilizado entre os dois países. A paciência estratégica pode ser o caminho. Os empresários daqui e de lá estão preocupados com a escalada ideológica de lado a lado. A Fiesp emitiu nota em defesa do fortalecimento do Mercosul, ressaltando que os problemas de funcionamento do bloco devem ser superados de maneira consensual entre todos os países-membros. A Argentina é o principal mercado brasileiro para produtos manufaturados e, portanto, o impacto sobre o setor industrial não pode ser ignorado, em especial o automobilístico e o de linha branca.
Os países-membros do Mercosul deveriam é estar preocupados com o day after da entrada em vigor do acordo Mercosul-União Europeia, até fins de 2021. Sem reformas estruturais, como a trabalhista, a tributária, a do papel do Estado, e o implemento das medidas de facilitação e desburocratização com o objetivo de reduzir o custo Brasil (que representa 22% do PIB) para melhorar a competitividade, a simples redução das tarifas no mercado europeu não poderá ser aproveitada pelas empresas nacionais. Sem avanços relevantes na inovação e na tecnologia, o setor industrial não terá como competir com empresas chinesas, sul-coreanas e norte-americanas no mercado europeu. Sem o fortalecimento institucional do Mercosul será mais difícil enfrentar os desafios que o acordo colocará para o Brasil e os demais membros do subgrupo.
Depois de conhecidas a política econômica e a linha de atuação do governo de Alberto Fernández, caberia uma atitude de moderação e de consultas bilaterais em nível técnico. A diplomacia parlamentar, recém-inaugurada pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia, também poderia ajudar. Ao Brasil interessa uma Argentina que volte a crescer, estável política e economicamente. Parece improvável que Brasília possa adotar uma posição ideológica radical em relação ao Mercosul sem um amplo debate com a sociedade e dentro do Congresso Nacional.
Como das vezes em que tensões entre os dois países foram superadas, o bom senso e o pragmatismo deveriam prevalecer e, assim, o Mercosul sair fortalecido. Ideologias não devem afetar o interesse nacional. Em primeiro lugar deveria estar o Brasil.
Fonte: “O Estado de São Paulo”, 10/12/2019