Recentemente, uma pesquisa realizada pela Fundação Perseu Abramo, ligada ao PT, repercutiu muito por sugerir que ideias supostamente liberais estariam bastante disseminadas entre os mais pobres. O que chamou minha atenção, em particular, foi a inclusão da valorização da meritocracia dentre essas ideias. Grosso modo, podemos considerar a meritocracia como uma concepção de justiça distributiva, segundo a qual benefícios devem ser distribuídos em conformidade com virtudes. Em um slogan: “a cada um conforme seu valor”. Contudo, via de regra, quando pensamos no sistema distributivo preferido pela tradição liberal, imediatamente, nos ocorre a ideia de um sistema de livre mercado. Ora, o livre mercado, porém, não premia virtudes. O livre mercado recompensa o atendimento mais eficiente de demandas subjetivas, demandas estas, inclusive, que podem ser moralmente questionáveis (a bebida que embriague mais rapidamente) ou então moralmente indiferentes (a moça cujo rosto fique melhor em um dado anúncio).
Nesse tipo de abordagem livre mercadista, a justiça liberal não se preocupa em saber se foi realizado algum padrão de distribuição, segundo o qual pessoas de valor – pessoas trabalhadoras, por exemplo – tenham recebido uma recompensa adequada a esse valor. Trata-se de uma teoria da justiça preocupada apenas em saber se a gênese de qualquer padrão momentâneo de distribuição deu-se sem fraude ou violência. Em suma, no horizonte dessa teoria, não importa se ficou mais rico aquele que apenas estava no lugar certo na hora certa ou mais pobre aquele que se esforçou mais. Importa, sim, por exemplo, se o mais rico trapaceou ou não para chegar aonde chegou.
Por sinal, o credo em uma concepção de justiça meritocrática parece mais condizente com a religiosidade popular, que crê em um Deus como distribuidor sumamente sábio e justo da felicidade em relação proporcional com as boas ações de cada um de nós. Essa ideia de distribuição está tão firmemente cravada em nossa cultura que até o “bom velhinho”, que aparece justamente no aniversário de Deus, procura presentear aquelas crianças que foram boas ao longo do ano. Pois, por mais comercial que a data em questão tenha se tornado, esse ideal de distribuição nada tem a ver com a lógica difusa e descentralizada de distribuição do mercado. Nesta, cada um de nós é um distribuidor, que distribui de acordo com o atendimento de suas necessidades – sem nem pretender contar com aqueles super poderes de Deus ou do Papai Noel, para sondar se os que recebem o dinheiro são mesmo merecedores dele.
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Essa dupla constatação de que o ideário meritocrático tem raízes mais profundas na nossa cultura e de que esse ideário não é, necessariamente, liberal, porém, nos lança uma pergunta interessante: para além de uma adesão, em algum grau, ao livre mercado, como conclusão, quais são as premissas propriamente liberais? Qual é o princípio ao qual adere o liberal para chegar à conclusão de que o mercado seria uma boa forma de distribuir recursos, mesmo se não for uma forma perfeita?
Essa é uma pergunta difícil. Alguns “liberais revisionistas”, para usarmos a expressão de Joseph Raz para descrevê-los, dizem que o princípio do liberalismo não é a liberdade individual. Ronald Dworkin, um desses “revisionistas”, disse que o princípio constitutivo do liberalismo é a igualdade. Outro deles, John Rawls, preferiu falar em liberdades, no plural, mas nem sequer incluiu a liberdade econômica dentre elas. Uma solução fácil, tão comum quanto estúpida, seria dizermos que autores como Dworkin e Rawls não são liberais, mas apenas capturam, indevidamente, a palavra para descrever suas respectivas teorias. A mim, isso parece mais a famosa falácia do falso escocês. Você propõe uma característica comum a todo escocês, digamos: “todo escocês usa kilt”. Alguém lhe aponta um escocês que nunca usou, não usa e não pretende usar kilt. Você responde: “bom, então, ele não é um escocês”. Simples. Estúpido.
O mais sensato, parece-me, seria abandonarmos as tentativas de descoberta de um credo comum a toda uma tradição, que se disseminou por vários países, em várias línguas, ao longo já de séculos. Por sinal, é essa trilha que a filosofia tem seguido ao lidar com vários conceitos, não só o de liberalismo. Muitas vezes, não há qualquer definição conhecida para o conceito, mas apenas algumas características que são pensadas como necessárias em relação a várias aplicações desse conceito, mas sem que se descarte a possibilidade de que alguma aplicação do mesmo conceito faça sentido sem que algumas dessas características estejam presente. As características incluídas nesse conjunto também podem se manifestar em diferentes graus. Quando encontramos casos periféricos do conceito, em que algumas características estão ausentes e outras tantas se manifestam em menor grau, o melhor é fazer essa constatação e deixar por isso mesmo. Nesse sentido, eu diria que Dworkin, por exemplo, seria um caso periférico de liberal, procurando determinar o caso central do liberalismo, aquele com todas as características presentes em máximo grau, mas isso não vem ao caso aqui. O importante é ficar claro que não acredito que exista e nem proponho um credo único e oficial para a tradição liberal, simplesmente excluindo dela todos que não façam essa mesma profissão de fé.
Nos limites desta breve reflexão, gostaria apenas de fazer minha própria sugestão quanto a uma das características que formariam o caso central do liberalismo. Eu incluiria nesse conjunto um forte apreço pelo que os anglófonos chamam de “common sense”, o que é algo diferente de um conjunto de crenças explicitadas em resposta a perguntas formuladas em uma pesquisa, por exemplo. O senso comum, nesse sentido específico, é um bom senso natural. Uma capacidade que todo ser humano teria de deixar idiossincrasias de lado para avaliar um caso particular de um ponto de vista comum, o ponto de vista de um espectador imparcial, como dizia Adam Smith.
Esse ponto de vista comum seria possível se pressupormos que, como seres humanos, tivéssemos todos um sentido em comum para avaliações particulares. Ativar esse sentido seria uma questão de não nos deixarmos guiar, de um lado, por nossos caprichos pessoais e, de outro, por grandes construções teóricas, que visam nos ensinar em que consiste o bem e o mal moral – como se esse saber fosse alguma boa nova a ser revelada por um sábio, que viu a luz, enquanto o resto da humanidade permanece nas trevas da caverna.
É aqui que a tradição liberal surge como uma tradição filosófica avessa a esse tipo de empreitada político-pedagógica arrogante, ou seja, avessa a utopias, idealizações e grandes racionalizações. O papel da razão é mais modesto dentro da tradição liberal. É apenas o papel humano de esclarecer e corrigir o senso comum. Em questões práticas, a razão liberal não opõe ao senso comum suas verdades metafísicas. Por isso, o liberal não se vê como o profeta ou o messias que vai guiar o povo das trevas para a verdade. Na verdade, como ele só pode procurar excluir de seus juízos de valor as contaminações pessoais e metafísicas, sem saber se obteve sucesso nisso, ele nunca pode estar certo de seu juízo. Sua epistemologia insiste na falibilidade do juízo humano, na necessidade de confrontar seu juízo com o de outros seres humanos e em um ceticismo salutar quanto aos poderes de nossa razão.
Com isso, voltamos ao mercado, mas, agora, como conclusão. Se o liberal não pode estar certo quanto ao que é certo, se não se julga o dono de uma verdade salvadora, ainda velada para os demais, ele não pode acreditar em grandes estratégias de planejamento central. Ele não tem um projeto para toda a sociedade. É verdade que ele não é um atomista, como querem seus detratores, pois ele acredita nas associações. Porém, ele julga que associações devam ser sempre preferencialmente livres. O liberal, em suma, se inclina ao “deixa fazer” (“laissez faire!”), porque o totalitarismo repugna ao que lhe configura como tal, como liberal. Se não podemos nos isolar e nem forçarmos uns aos outros a aderir todos a um mesmo ideal, dentro de uma única organização social imposta a todos, o que poderia soar mais natural do que um “deixe que se associem como quiserem”?
Essa é uma característica que me parece saliente no pensamento liberal. Certamente, como insisti, é uma característica que pode estar ausente em alguns casos em que ainda falaríamos com sentido de liberalismo. Além disso, a inclinação natural ao “laissez faire”, mesmo quando presente, pode ter que ser ponderada com outros ideais valiosos para liberais, como o florescimento da pessoa humana, que, talvez, nem sempre seja passível de ser realizado apenas pela não interferência em livres associações. É, assim, por exemplo, que Joseph Raz propõe um liberalismo perfeccionista, que não interfere apenas em algumas liberdades, porque pensa ser necessário fomentar ativamente a outras. Seja lá como for, o importante é entender que liberais somos muitos, sendo o regozijo diante dessa pluralidade de formas de pensar justamente o que parece nos unir, ao menos, muito mais do que qualquer ideia de meritocracia o faria.
Fonte: “O Estado de S. Paulo”, 18/04/2017
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