Em sua primeira e mais importante votação no Parlamento britânico, apesar de todas as ameaças contra os dissidentes do Partido Conservador, o premiê britânico, Boris Johnson, sofreu uma derrota épica, por 328 votos a 301, que entregou o controle dos trabalhos parlamentares ao grupo contrário à saída da União Europeia (UE) sem acordo.
Com a decisão, deverá ser aprovada hoje a lei proibindo Boris de pôr em prática o Brexit no dia 31 de outubro, caso não haja acordo até lá. É nula a chance de que a UE aceite mudar os termos do acordo fechado com Theresa May no ano passado. Em consequência, a nova lei deverá adiar a saída do Reino Unido da UE pela terceira vez, para 31 de janeiro.
Como retaliação, Boris anunciou que proporá ao Parlamento a realização de eleições antecipadas em outubro, dia 14 ou dia 15 – antes da data fatídica do Brexit. O líder trabalhista, Jeremy Corbyn anunciou que aceita novas eleições apenas depois que o cenário de divórcio da UE sem acordo tiver sido afastado.
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Como a proposta de Boris precisa do voto de dois terços dos parlamentares para ser aprovada, patamar impossível de atingir sem apoio de trabalhistas, o mais provável é que seja rejeitada. No final da semana, a sessão parlamentar será suspensa até 14 de outubro, graças à manobra de Boris na semana passada, com aval da rainha Elizabeth, para reduzir o tempo das discussões e tentar forçar o Brexit sem acordo.
Os integrantes do Parlamento passarão então a se preocupar não com o Brexit, mas com as eleições, objetivo tanto de Boris quanto de Corbyn. A interminável novela do Brexit resulta de um impasse clássico em ciência política, conhecido como “paradoxo de Condorcet” – decifrado pelo economista Kenneth Arrow em seu Teorema da Impossiblidade.
Arrow demonstrou a impossibilidade de garantir uma preferência consensual quando um grupo (no caso, o Parlamento) precisa escolher entre três possibilidades (sair da UE sem acordo, sair com o acordo fechado por May ou ficar). Mesmo que cada parlamentar tenha uma ordem de preferência individual entre as três escolhas, nem sempre é possível determinar uma ordem para todo o grupo.
De modo específico: mais parlamentares preferem a permanência na UE ao acordo de May (já rejeitado três vezes no Parlamento); mais parlamentares preferem sair sem acordo a ficar na UE (afinal, o Brexit venceu o plebiscito de 2016); mais parlamentares preferem o acordo de May a sair sem acordo. O resultado é uma situação circular, insolúvel.
Em razão do impasse, cada vez que se aproxima a data fatídica do Brexit e uma possibilidade concreta se torna provável, a maioria contrária a ela se consolida para derrotá-la. Foi assim nas três votações contra o acordo de May. Deverá ser assim hoje com a legislação para barrar o divórcio sem acordo. Seria provavelmente assim se houvesse uma tentativa de revogar o Brexit ou convocar um novo plebiscito.
Como resultado do Teorema da Impossibilidade de Arrow, toda vez que o Brexit se aproxima, acaba sendo adiado. Tal mecanismo derrubou May e provavelmente derrubará Boris. Só novas eleições, com uma nova composição do Parlamento, poderão romper o mecanismo circular do paradoxo de Condorcet e tirar o Reino Unido do impasse.
Politicamente, contudo, o preço a pagar é altíssimo. Ao insistir no Brexit a qualquer custo – “do or die” –, Boris transformou em ruptura irreversível a rachadura que dividia seu partido. Perdeu ontem a maioria, com a defecção de um parlamentar para o Partido Liberal Democrata. Se cumprir o que prometeu, expulsará os 21 que o desafiaram.
O risco da insistência em transformar os Tories no partido do Brexit “doa a quem doer” é o encolhimento nas urnas. O partido do Brexit a todo o custo já existe: chama-se Partido do Brexit, é liderado por Nigel Farage e, mas eleições europeias de maio, ficou em primeiro lugar com 31% dos votos (os conservadores ficaram em quinto, com 9%).
A situação dos trabalhistas, em que pese o desejo de Corbyn, não é melhor. Desde o início, Corbyn foi ambivalente diante do Brexit. Para agradar o eleitorado nacionalista do Nordeste inglês, diz ser favorável à manutenção da união aduaneira com a UE.
Por causa disso, levou os trabalhistas a rejeitar três vezes a proposta de May no Parlamento. Por mais que a solução adotada para manter aberta a fronteira entre as Irlandas desagradasse, era a única proposta viável, dada as exigências, para pôr o Brexit em prática no prazo inicial.
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Com sua estratégia teimosa, Corbyn contribuiu para o impasse e semeou descontentamento no Partido Trabalhista, de maioria contrária ao Brexit. Nas eleições europeias, os trabalhistas ficaram em terceiro, com 14%. Em nenhuma pesquisa eleitoral vencem os conservadores.
Também é improvável que os conservadores obtenham maioria sozinhos. Hoje, Boris só governa graças ao acordo de conveniência fechado por May com o Partido Unionista Democrático (DUP), da Irlanda do Norte. Depois da eleição, terá de negociar maioria com outros partidos. Para isso, de nada serve a postura radical diante do Brexit.
O Teorema da Impossibilidade poderá, portanto, continuar a se manifestar na realidade polarizada da política britânica.
Fonte: “G1”, 04/09/2019