A chamada prospective overruling é a técnica utilizada para arejar posicionamentos jurisprudenciais corroídos pelo tempo e distantes dos fins constitucionais de elevação civilizatória e aprimoramento coletivo. Sabidamente, decisões judiciais não são feitas de pedra, mas de valores jurídicos suscetíveis à natural influência do avançar da vida em sociedade. Logo, o progredir da existência traz consigo um natural efeito renovador da lei e de suas interpretações. Ou seja, a revisão jurisprudencial deve ser um processo de aperfeiçoamento civilizatório e, não, um retrocesso institucional.
Como já bem apontou a inteligência superior de Aharon Barak, ex-presidente da Suprema Corte de Israel, as mudanças sociais “algumas vezes são drásticas, repentinas e facilmente identificáveis; outras vezes a mudança é menor e gradual, não podendo ser percebida sem uma adequada distância e perspectiva”. Por assim ser, o artesanal trabalho de interpretação constitucional exige uma contínua simbiose entre o juiz e a realidade prática, aproximando o texto da norma ao contexto da sociedade de forma a garantir a vitalidade da Constituição frente às justas expectativas dos cidadãos.
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O Supremo haverá de arcar com as consequências do seu ato
Diante do calor das discussões constitucionais do atual momento brasileiro, cumpre indagar se o Supremo estaria autorizado a modificar uma decisão plenária, de outubro de 2016, que permitiu o início do cumprimento da pena após o julgamento criminal-condenatório de segunda instância, salvo a excepcional concessão de efeito suspensivo pelas Cortes Superiores. Poderia, então, o Tribunal — em menos de dois anos — reverter sua linha decisória, adotando critério retardatário e simpático à manutenção de um nocivo ambiente de impunidade aos crimes de corrupção política? Ora, poder, pode. Agora, se deveria fazer isso, é outra discussão.
Objetivamente, as manifestações plenárias da corte visam dar unidade e coerência interna ao sistema legal, exaltando os postulados de segurança jurídica e previsibilidade de condutas sociais. Sobre o ponto, há decisão pontual na linha de que “precedentes firmados pelo Supremo Tribunal Federal desempenham múltiplas e relevantes funções no sistema jurídico, pois lhes cabe conferir previsibilidade às futuras decisões judiciais nas matérias por eles abrangidas, atribuir estabilidade às relações jurídicas constituídas sob a sua égide e em decorrência deles, gerar certeza quanto à validade dos efeitos decorrentes de atos praticados de acordo com esses mesmos precedentes e preservar, assim, em respeito à ética do Direito, a confiança dos cidadãos nas ações do Estado” (MS 26603/DF, rel. min. Celso de Mello, j. 4/10/2007).
Como se vê, o processo de superação de paradigmas jurisprudenciais não pode se dar de forma açodada nem servir a casuísmos de empreitada. Sem cortinas, a desvalia de um padrão decisório consolidado há que estar evidenciado na realidade social, forçando o ato introspectivo da corte sobre suas próprias convicções de modo a revelar um aperfeiçoamento hermenêutico positivo da Constituição à luz das circunstâncias, necessidades e desafios do presente. Sabidamente, a vida ensina que a marcha da evolução caminha para frente. Logo, a lei deve ter como norte o progresso de sua respectiva comunidade política, elevando-a em seus hábitos, posturas e relações sociais.
Por tudo, caberá à sabedoria da suprema corte não deixar que subjetivismos passageiros e pressões de empreitada preponderem sobre a inegociável honra da instituição. Jamais a alta função de um Tribunal foi tão necessária à elevação da honestidade, na exemplar aplicação da lei e no resgate da confiança do povo na probidade dos órgãos públicos. A Constituição, além de norma jurídica, é a carta de princípios e valores da República, tendo uma natural força interna para o aprimoramento moral da vida coletiva. E não existe maior imoralidade republicana do que a abusada impunidade política.
O Brasil precisa mudar. Nossa democracia exige maior integridade pública. Algumas mudanças não são fáceis, mas se tornam cogentes. Nas horas mais difíceis, os homens se provam grandes ou se fazem pequenos. A máxima de “não seguir a maioria para fazer o mal” é, no dizer do jurista italiano Gustavo Zagrebelsky, o ensinamento divino para que os juízes honrem o seu dever. E cumprir o dever de bem julgar — com consciência, caráter e espírito público — é a maior glória que um magistrado é capaz de alcançar.
Nestes tempos de tantas dúvidas e incertezas sobre o futuro do país, ao Supremo cabe a indelegável soberania da resposta: há lei no Brasil ou apenas um rasteiro jogo de poder?
Fonte: “ConJur”, 30/04/2018