Se alguém tiver saído do Brasil um dia antes da explosão da atual crise de abastecimento de combustíveis, deve ter-se chocado com o caos inesperado que passou a imperar no país da noite para o dia, enquanto no exterior tudo parecia calmo nesse setor.
É fato que desde que o governo Temer se iniciou até hoje, o preço externo do barril praticamente dobrou. Dado o atraso de preços herdados da fase Dilma e a bagunça geral na Petrobras, até que a desculpa da arrumação da casa deve ter permitido que se implantasse um realismo tarifário, com mudanças frequentes de preços nessa área, sem maiores reações contrárias. Mas, agora, o que se constata é que alguma gota d’água fez a bomba estourar. Ou, então, dada a sua fraqueza intrínseca, o governo não teria mesmo como enfrentar problemões latentes, como esse. E, assim, além da crise fiscal e da crescente precariedade da infraestrutura (que aumenta custos dos que trafegam nas rodovias), passa a enfrentar um novo abacaxi de grande dimensão.
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Quando se tem um bem transacionável com o exterior, como o petróleo, “realismo tarifário” é algo simples de conceituar. Os preços internos devem acompanhar os externos, ou seja, refletir o “custo de oportunidade” desse bem para o país, a não ser que se trate de uma situação temporária e excepcional, o que não é o caso agora. Esse é o guia correto para produtores e consumidores tomarem decisões. Caso contrário, seria o que, loucamente, a Venezuela fez: com muito petróleo, manteve os preços artificialmente baixos após as crises dos anos 1970. Nas ruas, desfilavam carrões americanos bebedores de gasolina, enquanto o mundo estudava alternativas como automóveis mais econômicos, uso do álcool etc. A dúvida que me ocorre é se, a exemplo do que ocorreu aqui na primeira crise do petróleo, não se deveria adotar uma solução gradual, incluindo uma menor frequência de reajustes tarifários.
Lá atrás, quando estourou a primeira crise do petróleo e produzíamos quase nada do que consumíamos, o problema apresentado como o mais urgente era a impossibilidade de gerar os dólares adicionais requeridos para pagar o custo a mais do combustível importado. Se não havia petróleo para retirar do território brasileiro tão cedo, raciocinava o governo da época, de que adiantaria ajustar imediatamente o preço interno ao externo, se o efeito líquido principal seria aumentar a despesa do país em dólares, estes superescassos, ao lado de a população conter um pouco o consumo e gastar mais na moeda local? O temor maior era a economia, que vinha crescendo a todo vapor, entrar numa das piores recessões já vistas, sem muita saída a curto prazo. Daí a estratégia de ajuste gradual que se adotou.
De lá para cá, muita coisa mudou. A produção interna aumentou de forma significativa, chegando perto do consumo, e a capacidade de resposta dos mercados envolvidos a aumentos de preços se tornou bem maior. Ou seja, primeiro o problema não é tanto de maior gasto em dólares, como antes. Assim, a questão a resolver é mais interna do que externa. E se acreditarmos que o mundo operará com um petróleo sistematicamente mais caro, não há saída. É preciso deixar os mercados funcionarem o mais livremente possível, desempenhando o papel central que deles se espera. Na grande escassez, preços mais altos vão simultaneamente reduzir o consumo e estimular a produção. O que tem de ser escolhido é quão gradual o ajuste precisa ser.
Aqui, a pergunta relevante é se o setor de transporte de cargas conseguirá, no momento em que vivemos a mais longa e mais profunda recessão de nossa história, ou seja, sem quebradeira generalizada, passar para a frente, sem maiores problemas, aumentos tão frequentes nos preços dos combustíveis como os que têm ocorrido ultimamente. Informações esparsas sugerem, inclusive, que, para complicar ainda mais o quadro, há elevado grau de capacidade ociosa no momento atual, por ter havido uma onda de investimento em veículos acima do ideal nos últimos tempos, em boa medida por estímulos governamentais.
De qualquer forma, não se trata de o governo simplesmente mandar a Petrobras acabar com a política de preços realistas que vinha seguindo, ainda que explicite e assuma o ônus de criar mais um subsídio no orçamento superapertado que administra. Seja qual for a solução adotada, é preciso explicar detalhadamente à sociedade as causas que levaram aos problemas atuais. Nesses termos, se hoje o deficit público é tão difícil de administrar, imagine se tivermos de aumentá-lo pesadamente todas as vezes que pressões oriundas de situações como a do petróleo encontrarem respaldo em gestões governamentais em fase de decomposição política como a atual.
Fonte: “Correio Braziliense”, 29/05/2018