Ignoremos, por um momento, os protestos e o embate político. Duas razões de ordem estritamente jurídica devem ser invocadas hoje no Supremo Tribunal Federal (STF) para defender a prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, condenado na segunda instância a doze anos um mês de cadeia.
Primeira: decidir o contrário favorece a impunidade. Ainda que o habeas corpus de Lula não tenha efeito imediato noutros casos – não há o que os juristas chamam de “repercussão geral” –, será usado por advogados como argumento para soltar outros condenados.
O advogado de pelo menos um dos condenados pelo juiz Sérgio Moro, preso depois que a sentença foi confirmada na segunda instância, diz que está com a petição pronta caso o STF conceda o habeas corpus a Lula. Outros já entraram com recurso nos tribunais superiores e pretendem incluir adendos citando o caso.
Nada restringirá tais casos aos condenados Operação Lava Jato. Quem tiver condição de recorrer ao STF ou ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) recorrerá.
É verdade que hoje os advogados já contestam hoje no STJ e no STF a decisão de 2016 que permite a prisão depois da decisão da segunda instância. Muitos têm sucesso quando seus pedidos são julgados por juízes benevolentes como Ricardo Lewandowski, Marco Aurélio Mello ou Gilmar Mendes, numa espécie de loteria de habeas corpus, como defini em post anterior.
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Mesmo assim, o caso de Lula daria um argumento bem mais forte, pois se trata de decisão tomada pelo plenário do STF, o último foro judicial do país, contrária ao entendimento anterior a que fora dada repercussão geral.
Todos os julgamentos da questão, desde 1991, se deram por meio de habeas corpus. A presidente do STF, ministra Cármen Lúcia, se negou a colocar em votação as duas Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADCs 43 e 44) que confeririam ao tema uma interpretação definitiva, de repercussão geral imediata. Isso significa que, para os defensores dos réus, terá maior valor a decisão mais recente – aquela a respeito de Lula.
A situação transmitirá aos corruptos graúdos um incentivo maior tanto para cometer crimes quanto para evitar fechar acordos de delação premiada, já que bastará lançar mão da infinidade de recursos que a Justiça brasileira lhes oferece, sem medo de ir para a cadeia. A barafunda de embargos, agravos, recursos especiais e extraordinários continuará a fazer a fortuna das bancas de advogados especializadas em defender os espoliadores do Estado brasileiro.
Na outra ponta, haverá incentivo também maior aos juízes e procuradores para lançar mão de prisões provisórias, hoje responsáveis por manter na cadeia 40% dos mais de 710 mil presos que lá estão. Para a maioria, não haverá recurso. Nem especial, nem extraordinário, já que não dispõem do principal – o financeiro.
Eis o momento em que a prisão ocorre em países onde há menos incentivo à impunidade:
Inglaterra – Depois da decisão da primeira instância. O preso pode pagar fiança e desfrutar “liberdade provisória” até a decisão da segunda, mas em geral aguardam presos;
Estados Unidos – Depois da decisão da primeira instância, ainda que depois a pena possa ser revista;
Canadá – Depois da decisão da primeira instância, há também exceção nos casos de fiança estabelecidos na lei;
Alemanha – Alguns tipos de recurso suspendem a sentença até o julgamento da segunda instância, mas nenhum até a decisão de tribunais superiores;
França – O código penal prevê condições para que, mesmo pendente de recursos, o tribunal de primeira instância já emita ordem de prisão;
Espanha – O código penal prevê até a prisão de quem tenha sido absolvido na primeira instância, caso a promotoria obtenha um recurso capaz de suspender a sentença;
Argentina – A execução da sentença é imediata e só pode ser adiada em casos de mulheres grávidas, com filhos menores de seis anos ou de doenças graves.
Em todos esses países vigora o princípio da presunção da inocência, semelhante ao estabelecido no inciso 57 do artigo 5º da Constiruição brasileira. Em nenhum deles, tal princípio é considerado contraditório com a prisão depois da decisão da segunda instância.
É essa a segunda razão jurídica para negar o habeas corpus de Lula. Desde a promulgação da Constituição de 1988, há vasta jurisprudência garantindo que a presunção de inocência é perfeitamente compatível com a prisão depois da decisão da segunda instância.
Em seu voto no julgamento de 2016, o ministro Teori Zavascki citou onze habeas corpus em que o STF arbitrou sobre a questão desde 1991. Teori mencionou ainda duas súmulas aprovadas pelo plenário do STF em 2003. Em todas essas situações, os ministros decidiram que a presunção de inocência não é argumento para evitar o cumprimento da pena depois da segunda instância.
Um dos habeas corpus, de 1994, foi relatado pelo ministro Celso de Mello, que depois se revelou um defensor extremado do cumprimento das penas apenas depois de esgotados todos os inúmeros recursos, situação definida no jargão jurídico como “trânsito em julgado”.
Foi apenas em 2009, num habeas corpus relatado pelo ministro Eros Grau, que mudou o entendimento do STF. A decisão foi tomada por sete votos a quatro. Em 2016, ao rever a questão, seis ministros decidiram que a pena pode ser cumprida depois da segunda instância – e um, Dias Toffoli, depois da decisão do STJ.
Para entender por que não há contradição entre a presunção de inocência e a prisão depois da decisão da segunda instância, nada melhor do que ouvir o que escreveu a respeito o ministro Gilmar Mendes: “A norma afirma que ninguém será culpado até o trânsito em julgado da condenação, mas está longe de precisar o que vem a ser considerar alguém culpado”.
No entender de Gilmar, a cláusula constitucional não impede que a lei trate um réu de “forma progressivamente mais gravosa” até que esteja estabelecida integralmente sua culpa. “É natural a presunção de não culpabilidade evoluir de acordo com o estágio do procedimento”, escreve ele. “Esgotadas as instâncias ordinárias com a condenação à pena privativa de liberdade não substituída, tem-se uma declaração, com considerável força, de que o réu é culpado, e a sua prisão, necessária. Nesse estágio, é compatível com (essa) presunção determinar o cumprimento da penas, ainda que pendentes recursos.”
A própria natureza dos recursos disponíveis depois da decisão da segunda instância garante isso. Tanto o recurso especial (ao STJ) quanto o extraordinário (ao STF) não se debruçam sobre as provas ou sobre os fatos relativos ao crime. Destinam-se apenas a garantir a compatibilidade do processo com a Constituição (o extraordinário) ou com o resto da legislação (o especial).
“É no âmbito das instâncias ordinárias que se exaure a possibilidade de exame de fatos e provas e, sob esse aspecto, a própria fixação da responsabilidade criminal do acusado”, escreveu Teori em seu voto. “Os recursos de natureza extraordinária não configuram desdobramentos do duplo grau de jurisdição, já que não se prestam ao debate da matéria fático-probatória.”
Teori infelizmente morreu em desastre aéreo no início do ano passado. Foi substituído no plenário pelo ministro Alexandre de Moraes, que tem se revelado favorável ao cumprimento das penas depois da decisão da segunda instância. Gilmar, ao contrário, mudou de opinião desde que escreveu as palavras acima e desde seu voto eloquente com o relator Teori em 2016.
Caberá à discreta ministra Rosa Weber – contrária ao entendimento de Teori e Gilmar em 2016, mas desde então cumpridora fiel do entendimento do plenário nos habeas corpus que julga – o voto decisivo na sessão de hoje.
Fonte: “G1”, 04/04/2018