A Constituição que completa 30 anos amanhã incomoda as duas candidaturas que lideram a corrida pelo Planalto. O general Hamilton Mourão, candidato a vice na chapa de Jair Bolsonaro, considerou uma nova Carta feita por “notáveis”. O petista Fernando Haddad falou em “criar condições” para o Brasil ter uma nova Constituição.
Não faltam motivos sensatos para a insatisfação com a “Constituição Cidadã”, na definição de Ulysses Guimarães ao promulgá-la. Com 64.488 palavras, foi a terceira mais longa do mundo, numa lista de 190 analisadas pelo Comparative Constitutions Project, atrás apenas de Índia (146.385) e Nigéria (66.263).
Mas mesmo essa conta está defasada. Na versão mais recente, com suas 99 emendas, a Constituição brasileira já ultrapassou a nigeriana e chegou a 69.436 palavras. Entre elas, o substantivo “direito” aparece 167 vezes (no singular ou plural); “dever”, apenas 45 (como substantivo ou verbo).
Na Constituinte de 1988, sob o clima de desfazer o entulho autoritário da ditadura, quem soube fazer lobby plantou na Carta uma estaca para amarrar sua montaria democrática. Entre as dúzias de direitos e garantias constitucionais, estão lá a Polícia Ferroviária Federal (é ferroviária mesmo…), os portos lacustres e até o Colégio Pedro II.
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É tentadora a noção de que redigir uma nova Carta do zero traga ao país um novo período de bonança e alegria. Tentadora e ilusória. Essa é uma visão utópica que não resiste à realidade. Não passa de uma nova encarnação da fúria legiferante que de tempos em tempos acomete o país, que o economista (e constituinte de 1987) Roberto Campos chamava de “constitucionalite, uma espécie de diarreia constitucional”.
No mesmo período em que o Brasil teve oito constituições (três delas outorgadas, se incluirmos a reforma de 1969), os Estados Unidos tiveram apenas uma, promulgada em 1789, retificada em 1791, emendada 27 vezes desde então. No Reino Unido, ainda estão em vigor trechos da Magna Carta de 1215 e o Bill of Rights, de 1679.
A principal consequência das novas Constituições na história brasileira é abrir a porta para a enxurrada de reivindicações que, sob o pretexto de implantar esta ou aquela garantia, só acabam por ampliar a extensão do poder do Estado na vida do cidadão.
A história da Constituinte de 1988 é pródiga em exemplos de dispositivos absurdos, que tiveram de ser rechaçados nos anos seguintes, como o tabelamento dos juros em 12%. a definição de empresa nacional ou a probição da exploração do subsolo por capitais estrangeiros. “Cada parlamentar sente uma tentação insopitável de inscrever no texto constituinte sua utopia particular”, escreveu Campos em seu livro de memórias, A lanterna na popa.
É fato que as mazelas brasileiras derivam em grande parte de direitos inscritos na Constituição, em especial da arquitetura barroca que procurou resolver questões sociais gravíssimas sem se preocupar com o custo das soluções. Derivam daí afalência do Estado, nossa crise fiscal crônica e a incapacidade de reação econômica tanto nas crises quanto, igualmente grave, nas oportunidades.
Na tentativa de compensar os anos de autoritarismo, a Carta de 1988 adotou uma postura que Campos qualificou como exageradamente “reativa” e “instrumental”. Foi exageradamente detalhista na garantia dos direitos positivos, aqueles que têm custo, como aposentadoria, saúde, educação ou assistência social. Mesmo nos direitos negativos, como voto, liberdade de associação e opinião, estabeleceu regras de representatividade que hoje não satisfazem.
É uma fantasia acreditar que reescrever uma nova Carta do zero, como insinuaram Haddad ou Mourão, resolverá todos esses problemas. Uma nova Constituinte teria todos os defeitos das de 1946 e 1988. Qualquer que seja o eixo a conduzi-la, acabará por abrir a porteira a novas “utopias particulares”, como diria Campos.
Quando não ao autoritarismo, como ocorreu na Venezuela, na Turquia e em países da Europa Oriental. Todo candidato a autocrata quer mudar a Constituição para ampliar seus poderes. É esse o maior risco embutido em qualquer tentativa de gestação constitucional.
A prórpria Constituição em vigor dispõe de mecanismos que permitem consertar seus defeitos. A capacidade de adaptação a novas realidades é a qualidade mais importante das Cartas duradouras. É perfeitamente possível reformar a política, a Previdência, as leis tributárias e enfrentar todos os nossos dramas sem reescrever o texto constitucional.
Dá trabalho? Certamente. Mas é para isso que existe o Congresso. Se negociações são exaustivas, se o choque entre Legislativo e Executivo nem sempre traz o resultado desejado, é assim mesmo que funciona a democracia.
Democracia dá trabalho. Sempre há frustração envolvida. Mas a tentação de resolver tudo por meio de um passe de mágica constituinte traria frustrações ainda maiores. “O problema brasileiro”, dizia Campos, “nunca foi fabricar Constituições, e sim cumpri-las”.
Fonte: “G1”, 04/10/1992