Não podemos afirmar que a economia mundial atravessa um período brilhante. Na verdade, já há mais de dez anos escasseiam as notícias alentadoras e frequentemente somos assombrados por previsões de eminentes crises. Ao constatarmos que o crescimento da economia americana não supera sua timidez, que a Europa padece do mais longo período de pasmaceira do pós guerra, que o Japão não se livra do contexto estagnante e a América Latina arrefeceu sua convicção de atingir rápido desenvolvimento econômico e social, cabe perguntar: o que está acontecendo de errado com o sistema capitalista?
Vários economistas não socialistas, tais como o americano prêmio Nobel Joseph Stiglitz e o francês Thomas Piketty, vêm alertando que o “establishment” de certos países capitalistas persiste em agir de forma a estreitar as possibilidades de impulsionar a economia. Nesse sentido, advogam reformas na maneira como a integridade do sistema é interpretada.
Existem motivos de temor a respeito do destino reservado às nações onde alguns caprichos das leis de mercado se sobrepõem a princípios relevantes ao crescimento do PIB e à justiça social. Não restam dúvidas de que a empresa privada constitui a melhor alternativa para organizar a produção de bens e serviços e de que a estatização não é sinônimo de eficiência, nem de melhor defesa dos interesses do povo.
Leia mais de Marcello Averbug
Presidências alarmantes
Desenvolvimento econômico e exportação industrial
O falso dilema
Porém, além de não vir sendo capaz de reanimar a economia mundial, o formato de capitalismo ora predominante demonstrou inabilidade para enfrentar três dos maiores tormentos que rondam a humanidade: a crescente inequidade social, a acelerada degradação ambiental e a índole desastrada do setor financeiro. Apesar de serem de naturezas inteiramente distintas, esses três fenômenos condicionam nosso futuro.
Por exemplo, nos Estados Unidos abundam os indicadores de agravamento da inequidade social. O recém publicado livro “The Triumph of Injustice”, de autoria dos economistas Emmanuel Saez e Gabriel Zucman, professores da Universidade da Califórnia, revela que:
a) entre 1962 e 2018, a renda dos 50% da população localizada na base da pirâmide social aumentou em 1,5 vezes, enquanto que a dos 0,1% mais ricos elevou-se em 7,3 vezes;
b) Os estratos menos privilegiados estão pagando proporcionalmente mais impostos do que os mais ricos. No caso específico do imposto de renda, entre 1962 e 2018 o percentual pago pelos 50% situados na base da escala social aumentou, enquanto diminuiu para os 10% mais ricos. O ultra bilionário Warren Buffet costuma dizer que paga menos imposto de renda do que sua secretária.
Panorama ainda pior prevalece na maioria dos países não pertencentes ao clube dos desenvolvidos, sendo o Brasil caso ilustrativo. Entretanto, é comum encontrar quem acredite ser possível a eternização do processo concentrador de renda, sem danos para a sociedade como um todo.
Em relação à negligência prevalecente na área ambiental, advogo que, assim como na Alemanha tornou-se ilegal negar o Holocausto, em todos os países deveriam ser processados os ocupantes de cargos públicos que negam a agressão humana à ecologia. Ao se recusarem a concretizar medidas protetoras do meio ambiente, essas autoridades mereceriam ser penalizados por cometerem crime contra a humanidade. O mesmo procedimento deveria recair sobre os demais cidadãos depredadores das normas ambientais
Outro traço verificado no capitalismo e passível de ser alvo de reforma, refere-se à tendência do setor financeiro em assumir riscos cujos estragos, em caso de fracasso, recaem também sobre o resto da sociedade. Tendo em vista a elevada influência dos Estados Unidos sobre a economia mundial, volto a usar esse país como exemplo.
Sabemos que as temerárias acrobacias do mercado financeiro norte-americano funcionaram como estopim da super crise de 2008/09. Pois bem; enganou-se quem pensou que o susto serviu de lição. Por incrível que pareça, percebe-se nos Estados Unidos a repetição dos erros detonadores do abalo sofrido há onze anos: começou a elevar-se o índice de vulnerabilidade do sistema de financiamento à aquisição de imóveis. O governo vem facilitando a subida da exposição ao risco das hipotecas imobiliárias, limpando o caminho para os bancos liberarem empréstimos a mutuários passíveis de não terem capacidade de saldar seus compromissos.
Fannie Mae, Freddie Mac e o Federal Housing Administration, instituições públicas garantidoras de empréstimos, abrigam hoje quase 7 trilhões de dólares em dívidas hipotecárias, montante 33% superior ao registrado na véspera da crise de 2008. Esse é o maior volume de qualquer época da história americana, segundo dados do Urban Institute. Assim sendo, eventuais incrementos na inadimplência tenderão a induzir outra crise. Segundo notícia do New York Times (13/10/19), o valor das amortizações de 30% dos empréstimos garantidos pela Fannie Mae encontrava-se, em 2018, na delicada situação de suplantar 50% da renda dos mutuários, enquanto que em 2016 essa relação era de 14%.
A única forma de evitar comportamentos perigosos como esses consiste em aperfeiçoar a regulamentação aplicada ao setor financeiro, a despeito dos inevitáveis protestos. Esse seria um dos ingredientes do processo de reforma do sistema capitalista mencionado anteriormente.
+ Samuel Pessôa: As medidas fiscais de Paulo Guedes
Poucos são os atores políticos e empresariais, no âmbito internacional, que compreendem a inexistência de incompatibilidade entre os seus interesses e as políticas de amenização das disparidades sociais de renda, de proteção ambiental e de contenção das traquinagens de agentes financeiros.
A consciência quanto à necessidade de reformas se expressa pela proposta de adoção de um “capitalismo progressivo”, pelo qual seria ampliada da atuação seletiva do Estado visando, entre outros, os seguintes objetivos: elevar a participação dos mais pobres nos frutos do crescimento do PIB, controlar a qualidade ambiental e aperfeiçoar a regulamentação de segmentos específicos da atividade econômica. A interferência estatal em outras áreas diminuiria e, em certos países, tais como o Brasil, a privatização do aparelho produtivo seria benéfica.
Enfim, advogar pelas reformas não constitui ato revolucionário marxista. Pelo contrário, trata-se de uma demonstração de apreço pelo sistema capitalista e de desejo de revigora-lo.
Fonte: “Conjuntura Econômica da FGV”