‘A vida não piora nem melhora”, falou o professor.
Um aluno invocado fez o teorema:
— Então, se melhorar piora e se piorar melhora?
— É a lei das ironias! Depois da chuva, o sol; e da juventude, a velhice. A redenção exige o pecado e o sim um sonoro não.
O professor, um sujeito empertigado e consciente do seu papel, tentou um arremate:
— Arthur Schopenhauer dizia que o mundo era tocado pela vontade. Essa pulsão de caráter sensual criou o intelecto que nos salva pela arte.
No Brasil, chamamos essa força de “vida”. “É a vida…”, proclamamos com indiferença, ou como sinal de resignação porque podemos lutar contra tudo — sobretudo na chamada “política” tal como ela é concebida por nós (eis um assunto que vale pesquisar) —, mas não podemos lutar contra a vida, da qual só escapamos cabalmente com a morte. Morte que é parte da “vida” como o que alguns chamam de nada.
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A morte é a paz do não ser; a vida é guerra, gozo e frustração. George Orwell trabalha com ironias (“guerra é paz”), tal como as leis de Murphy (“as coisas podem piorar, você é que não tem imaginação”) e os aforismos do Godot, de um Samuel Beckett contraposto aos otimismos da cultura americana que contemplam o sucesso como um “êxito” — uma feliz saída de um mundo ou condição. Mundo maravilhoso (what a wonderful world…) que, para eles, representa o papel do nosso desconfiado conceito de “vida”. Mais pessimista, mais realista e totalmente certo de que, em geral, “quanto maior o cargo, mais cheio de merda quem o ocupa”, conforme dizia tio Silvio, pronunciando um dos mais verazes axiomas da vida nacional.
Recordo a ironia dos meus tios maternos — Marcelino, Silvio e Mario. Cada qual com sua cota de esperança. A irônica esperança de suportar o peso da vida que nos arrasta sem comiseração ou piedade. Tio Silvio repetia: “Meu sobrinho, há que se beber muito para aguentar os trancos da vida!”
Quando meu pai jazia morto, vestido com aquela serenidade invejável e indesejável da morte, um Silvio de olhos tristes me olhou, voltou-se para o morto querido e pronunciou um conceito definitivo: fodeu-se!
Explico para os moralistas de plantão, cuja marca é a falta de inteligência simbólica, que o “beber” do Sivoca não era o mero álcool ou a fuga para uma fé cega, ideologia caolha, seita ou partido desonesto. Não! Era justamente isso que estou fazendo por uma mistura de compulsão, gosto e empenho: a escrita. A narrativa — a tal “moral da história” — com a qual temos (justo porque humanos somos) a obrigação de aceitar a “vida”. A nossa e a dos outros.
No momento, dessa intolerável insegurança do que chamamos de “Brasil”, cujos comandantes de merda — à direita e à esquerda — não deixam que ele encontre rumo. Um rumo que só pode acontecer quando ele for realizado, já que, sem a liberdade de decidir ou tentar, nada é feito. A vida não tem sentido em si mesma. Ela tem que ser vivida para ser alguma coisa.
A ironia é o riso do palhaço consciente de sua máscara num ato muitas vezes ensaiado que parece espontâneo; enquanto nós, fora do palco, tentamos transformar surpresas e desgraças em rotinas, afirmando: é a vida!
Quando meu Tio Mario, o Miroca, dizia que não havia happy end, exceto nos filmes estralados por Gregory Peck, ele ensinava que o heroísmo humano era o de, apesar de tudo, aguentar-se. Quando jovem, Miroca engoliu a cru a doença e a morte dos irmãos numa sequencia imerecida por critérios humanos, mas muito justas pelos desígnios divinos.
Não há contabilidade na vida: ela não é confiável, dizia, por seu turno, Marcelino, o Dom Juan da família, que talvez por isso se dizia comunista. Tudo deveria ser dividido, e ele contribuía namorando senhoras casadas com maridos ciumentos da “classe dominante”. É a vida, dizia.
A plena aceitação da ironia — afinal, é a vida… — ajuda a contrabalançar o catastrofismo. Hoje, desvendamos a podridão do sistema quando ouvimos a confissão dos batedores de carteira do povo. Foram-se as utopias, mas não as ironias. Dezenas de poderosos viraram sentenciados. Mocinhos são de fato bandidos. Mas continuam poderosos nas prisões transformadas em hotéis.
Eis uma extraordinária ironia. Quando, com um enorme sofrimento e uma densa hipocrisia, prendemos criminosos-correligionários-parentes e amigos; não porque queríamos, mas porque, no poder, eles abusaram dos seus privilégios, e era impossível não fazer alguma coisa, as prisões ficaram mais humanas! Têm que estar à altura dos seus prisioneiros poderosos.
Em democracias todos estão, infelizmente, debaixo da lei. O crime importa mais do que a pessoa e o cargo de quem o cometeu. Quando um cara que mora num palácio é preso, a cadeia tem que virar palácio.
É a vida…
Fonte: “O Globo”, 20/12/2017
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