O cheque especial é o emblema das disfunções da intermediação financeira. Apesar da redução da taxa Selic e das medidas adotadas pelas três diretorias anteriores do Banco Central, as taxas de juros do cheque especial subiram em cada uma delas. O motivo é só um, a inadequação da política bancária. É míope, estática e anacrônica.
Note-se que em vez de avançar, o sistema retrocedeu. A relação crédito/PIB encolheu e está na metade do seu potencial. A inadimplência bancária diminuiu apenas porque depois de um prazo é excluída do balanço dos bancos. Todavia, a sistêmica aumentou, há mais de 63 milhões de cidadãos com anotações de atraso nos birôs de crédito. É um recorde histórico, quiçá mundial.
Insiste-se que a questão é de custos, mas as taxas médias são 60 vezes maiores do que o custo do dinheiro. No entanto, omite-se nos debates sobre o crédito a inadequação da tributação direta e indireta sobre a intermediação.
A concentração é observada como problema, entretanto, no cheque especial. As taxas mais altas são 71% maiores do que a média dos quatro maiores bancos, no rotativo do cartão são 220% maiores e no crédito pessoal não consignado são mais de 1.000% maiores. É fato: as taxas dos quatro grandes bancos são muito altas, mas estão longe das mais altas.
Uma bandeira levantada é a da falta de educação financeira. Todavia, o sistema é ininteligível para 99% da população brasileira. As informações são bizantinas: taxa mês e taxa ano, dias corridos e dias úteis, impostos que são cobrados e não aparecem nem na demonstração de resultados nem na nota de crédito do Banco Central.
Mais de Roberto Luis Troster
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Pontos cegos no debate sobre crédito
São os mesmos diagnósticos de sempre e muda-se sem mudar nada. A resolução que coloca um limite ao cheque especial tem o mérito de tentar reverter esse quadro, e tem semelhanças com o que aconteceu em 2003. Na época, o consignado do INSS apresentava distorções perigosas.
O excesso de voracidade de alguns agentes financeiros causava danos perniciosos, como um comprometimento elevado das aposentadorias com os financiamentos, propaganda subestimando o custo, falta de padronização das informações e custo efetivo do crédito exagerado. Era um vale-tudo.
Em 2005, foi feita uma correção impondo tetos de taxas, de comprometimento da renda e de prazos e a fixação de protocolos de informações. O resultado foi que as taxas despencaram, acabaram os abusos e as distorções foram eliminadas. O positivo é que a modalidade tem gerado lucros sustentáveis para os bancos até os dias de hoje.
Não se deve confundir livre mercado com vale-tudo. Restrições, em determinadas circunstâncias, são eficazes e, sim, fazem parte do ferramental para dar mais eficiência à intermediação. São usadas para corrigir distorções como falhas de mercado, abusos de poder econômico, externalidades e assimetrias informacionais.
A atual norma que coloca um limite ao cheque especial tem algumas imprecisões e pode ser aprimorada. Também pode ser complementada, com outras medidas como regras de precificação, de padronização de informações e protocolos de contratação e execuções de operações.
A regulação em debate é eficaz em reduzir o custo do cheque especial, mais pode ser mais ainda se acompanhada de uma agenda de crédito mais abrangente, mais dinâmica e mais inclusiva.
Seria bom para os bancos, é melhor ainda para os brasileiros.
Fonte: “Folha de São Paulo”, 11/1/2020