Ao final de uma sessão histórica de quase onze horas, o Supremo Tribunal Federal (STF) negou no início desta madrugada, por seis votos a cinco, o pedido da defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva para impedir sua prisão.
Desta vez, funcionou a estratégia urdida pelo relator, ministro Edson Fachin, e pela presidente, ministra Cármen Lúcia. O voto de Fachin abriu a brecha para que a ministra Rosa Weber, único voto sobre o qual ainda havia dúvida, pudesse negar o habeas corpus a Lula. A condução precisa de Cármen deteve as manobras dos advogados de Lula e pôs a defesa contra a parede.
Não houve, ainda, um vaticínio definitivo do STF sobre a questão central em julgamento: quando e em que condições as penas devem começar a ser cumpridas. Apesar disso, a sessão resgatou um pouco da credibilidade do Supremo, em xeque desde a semana em que ministros trocaram farpas no tribunal e os vacilos de Cármen e Fachin contribuíram para a concessão de um salvo-conduto inédito a Lula.
Desde o início, Cármen optou por colocar em votação não as Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADCs 43 e 44) que trariam uma decisão de caráter geral a respeito do momento em que as penas devem começar a ser cumpridas – mas apenas o habeas corpus de Lula, rejeitado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Em seu voto, Fachin foi enfático ao afirmar que, naquele momento, o tribunal tomava uma decisão sobre aquele caso específico, não abrangente sobre as prisões depois da segunda instância. O objetivo era permitir a Rosa votar contra Lula de modo coerente com seu histórico.
Quando o início do cumprimento das penas foi discutido pelo plenário em 2016, ela foi contrária a autorizar as prisões depois da segunda instância. Mas tem adotado, em nome do “princípio da colegialidade”, a norma prescrita pelo tribunal em praticamente todas as suas decisões individuais e votos na Primeira Turma. Com o de Lula, negou 58 dos 59 habeas corpus que arbitrou sobre o assunto.
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Havia dúvida se ela consideraria a sessão de ontem uma oportunidade para o plenário rediscutir a jurisprudência geral, ou apenas mais um habeas corpus específico, a deliberar de acordo com o precedente estabelecido.
Num voto cauteloso e bem argumentado, Rosa reconheceu a competência do plenário para rever o assunto. Afirmou que nem todo precedente deve ser respeitado mecanicamente. Mas aproveitou a brecha aberta por Fachin. Preferiu, em nome da “segurança jurídica” e da “previsibilidade”, ater-se ao caso de Lula. Não reconheceu ilegalidade na decisão do STJ – e votou contra ele.
O voto de Rosa despertou a ira do ministro Marco Aurélio, relator das ADCs 43 e 44, prontas para votação desde o ano passado. Com o apoio de Ricardo Lewandowski, Marco Aurélio criticou Cármen por não tê-las levado a plenário. Em vão.
Àquela altura, Gilmar Mendes já proferira seu voto a favor de Lula e embarcara de volta a Portugal para um evento. Gilmar adotou a posição intermediária sugerida por Dias Toffoli em 2016: as penas poderiam, exceto em algumas situações, começar a ser cumpridas depois da decisão não da segunda instância, mas do STJ. Toffoli depois manteria a mesma posição e enfatizaria a exceção para decisões de júris populares – de acordo com ele, deveriam ser cumpridas de imediato. Também em vão.
Tanto Marco Aurélio quanto Lewandowski mantiveram a leitura estrita do trecho da Constituição que garante a presunção de inocência. Votaram pelo cumprimento das penas apenas quando todos os recursos estivessem esgotados, situação conhecida no jargão jurídico como “trânsito em julgado”. Novamente em vão.
A batalha estava perdida para a ala garantista do STF desde que Rosa concordara com Fachin, Alexandre Moraes e Luís Roberto Barroso. Barroso proferiu o voto mais cristalino, enfático e bem argumentado em favor da execução das penas depois da segunda instância.
Citou estatísticas decisivas para comprovar que os recursos aos tribunais superiores, STJ e STF, em geral não passam de manobras protelatórias e raramente resultam em revisão das sentenças anteriores.
De acordo com ele, num período entre 2009 e 2016, o STF analisou 25.707 recursos extraordinários ou agravos de natureza criminal. Desses, foram acolhidos só 2,93%, a maioria em favor da acusação, com agravamento na pena. Em favor aos réus, houve mero 1,12%. Em irrisório 0,035% dos recursos, apenas 9 casos, houve absolvição. De lá para cá, segundo Barroso, apenas mais 4.
No STJ, a situação não é diferente. Num exame de 68.944 recursos especiais ou agravos entre 2015 e 2017, apenas 1,64% das decisões favoreceram os réus – em 0,62%, absolvições; em 1,02%, os condenados saíram da cadeia. Nos mesmo período, 830 ações penais prescreveram no STJ e 116 no STF, mais do que a Suprema Corte americana julgou nos últimos dez anos.
Quem defende cumprir pena apenas depois do esgotamento de todos os recursos, disse Barroso, precisa ter em mente que, na prática, a sentença para um assassinato cometido 2009 não terá transitado em julgado até 2018. Ele relatou diversos crimes macabros que ficaram sem punição. “Este não é o país que eu gostaria de deixar aos meus filhos, um paraíso para homicidas, estupradores e corruptos”, afirmou.
Restou ao último representante da ala garantista, o ministro Celso de Mello, proferir um voto extenso e prolixo, repleto de citações e argumentos de princípio – nenhum deles capaz de desmentir a realidade absurda descrita por Barroso. O maior destaque no voto de Celso foi a reprimenda indireta que passou no general Eduardo Villas Bôas, que manifestara na véspera sua preocupação com a “impunidade” por meio de sua conta no Twitter. Celso fez uma defesa apaixonada da democracia, criticou o “pretorianismo” e as “soluções castrenses”.
No final, houve ainda duas manobras para tentar manter Lula solto. Primeiro, o advogado José Roberto Batocchio solicitou que a ministra Cármen Lúcia não desse seu voto sobre o habeas corpus, em nome do princípio (caduco) da isenção do presidente da Corte em matéria criminal. Esperta, Cármen levou o tema a votação. Nem mesmo os ministros favoráveis a Lula acataram a manobra estapafúrdia. Cármen selou então o destino de Lula com seu voto contra ele.
Batocchio tentou ainda obter uma extensão do salvo-conduto que mantivesse a prisão de Lula em suspenso até o julgamento das ADCs relatadas por Marco Aurélio. Nova derrota. Desta vez, ele contou apenas com os votos de Lewandowski e do próprio Marco Aurélio.
Na barafunda de recursos à disposição do réu na Justiça brasileira, os advogados de Lula não se darão por vencidos. Assim que sair o acórdão do habeas corpus do STF, certamente entrarão com embargos contra a decisão, que dificilmente irão a julgamento em plenário.
Antes disso, eles têm até o próximo dia 10 para tentar seus últimos recursos ao Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), que condenou Lula a doze anos e um mês de cadeia. No último dia 26, o TRF-4 negou os recursos conhecidos como como “embargos de declaração”. Até o próximo dia 10, os advogados podem interpor “embargos dos embargos”. Eles deverão ser negados em questão de dias – e só então o TRF-4 autorizará o juiz Sérgio Moro a emitir a ordem de prisão de Lula.
Fonte: “G1”, 05/04/2018