A pergunta visava apenas a saber que horas era o jogo da seleção, naquela tarde em que eu estava me deslocando de táxi no trânsito do Rio por conta de um compromisso. Era um amistoso antes da Copa de 1998, e eu queria apenas saber se o jogo já tinha ocorrido ou não. A resposta veio indignada: “16 horas. Eles fazem isso só para ferrar a gente!”. Preocupado com a revolta do motorista, não estendi a conversa. Visivelmente, ele estava furioso por não poder ver o jogo de noite. O detalhe é que o jogo era na Noruega e, para ele ser às 10 da noite daqui, teria que ser às 3 da manhã de Oslo — provavelmente, sem torcida… Acho que o meu informante, quando aluno na escola, tinha faltado à aula sobre fuso horário.
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Muitos anos depois, ao visitar na África do Sul a prisão em Robben Island onde Nelson Mandela esteve preso durante aproximadamente duas décadas, na loja de suvenires, enquanto esperava o barco que me levaria até a ilha, me deparei com uma frase dele que é toda uma filosofia de vida: “Enquanto atravessava a porta da cela rumo à minha liberdade, percebi que se não deixasse a raiva, o ódio e a mágoa para trás, eu continuaria ainda, de certa forma, preso”.
Quem esteve naquela sucursal do inferno e pensou nas condições de vida naquele lugar sabe que homens como Mandela nascem um a cada dez milhões e que não é representativo de nenhuma alma nacional específica, mas sim de um tipo de resiliência à adversidade que se encontra em raríssimas pessoas. Nem por isso, porém, a frase deixa de ser exemplo de um espírito de superação que, sem estar associado a tamanha dose de privações, pode sim ser encontrado em muitos casos.
O contraste entre os dois exemplos não poderia ser mais marcante — e no Brasil estamos do lado errado. Enquanto o ícone da luta contra o apartheid nos falava da necessidade de superar os problemas, encarar os desafios e vencer a adversidade, nosso motorista encarnava o mal nacional da vitimização: a ideia de que os problemas do país decorrem de terceiros, da conjugação de forças malignas que se uniram para prejudicar o país e os brasileiros. É uma paranoia doentia.
Para além das questões práticas que prejudicam o país — o drama fiscal, as reformas sempre difíceis de aprovar, o cipoal tributário etc. —, estão os problemas de nossa idiossincrasia, as mazelas do Brasil profundo, retratadas no cada vez mais atual livro de Sérgio Buarque de Holanda “Raízes do Brasil”. Há mais de 80 anos, ele escrevia que “nas formas de vida coletiva podem assinalar-se dois princípios que se combatem e regulam diversamente as atividades dos homens. Esses dois princípios encarnam-se nos tipos de aventureiro e do trabalhador. Já nas sociedades rudimentares manifestam-se eles na distinção fundamental entre os povos caçadores e os povos lavradores”. É nessas páginas que ele faz menção ao “esforço lento, pouco compensador e persistente” e contrasta os “esforços que se dirigem a uma recompensa imediata” àqueles “sem perspectiva de rápido proveito material”.
Dessa propensão à “recompensa imediata” resultam políticas populistas que tantos males nos causaram diversas vezes. Desse escasso apreço pelo “esforço lento e persistente, sem perspectiva de rápido proveito material” resultam as críticas às políticas visando ao longo prazo e à associação delas a supostos males claramente identificados na luta política: a “oligarquia” (termo muito usado em outros países da região, ainda que não muito aqui); o FMI, no passado; os “ricos” e as “elites”, sempre; os estrangeiros, às vezes: os EUA, a China etc. Por essa interpretação, incapaz de enxergar nossos problemas de frente de forma adulta, a culpa é sempre de terceiros. Precisamos entender que temos que atacar os problemas porque eles precisam ser resolvidos, e não porque exista uma conspiração de A ou de Z. Cedo ou tarde, o Brasil precisa crescer e olhar de frente para seus demônios — e nossas responsabilidades. A vitimização é uma doença infantil do país.
Fonte: “O Globo”, 19/11/2019