O STF julgou o mérito do Habeas Corpus do ex-presidente Lula, condenado em 2a instância. O país assistiu – mais uma vez – ao espetáculo de senhoras e senhores togados, usando um linguajar barroco e rituais elaborados, tomando uma decisão com profundo impacto moral e prático em nossas vidas.
O pronunciamento do Ministro Barroso, feito durante sua declaração de voto, encapsula algumas das principais questões que tornaram essa sessão do STF um momento crítico – mais um – da história da frágil democracia brasileira.
O Ministro Barroso distorceu os fatos quando, na sua argumentação, citou um grande percentual de presos no sistema penitenciário que estão lá por ofensas “não violentas” relacionadas a drogas. O Ministro deve ignorar que a característica marcante do tráfico de entorpecentes é a brutalidade da violência dos criminosos. O jornalista Tim Lopes, morto em 2002, é apenas uma entre milhares de vítimas – Tim foi sequestrado, torturado e morto com requintes de crueldade em uma favela do Rio de Janeiro. Não existe tráfico de drogas pacífico ou inofensivo. A juíza Patrícia Alvares Cruz, corregedora do Departamento de Inquéritos Policiais de São Paulo, explicou isso de forma clara: “todo o traficante, mesmo o menor, trabalha para o PCC”. O dinheiro do tráfico financia inúmeras outras atividades criminosas como, por exemplo, o roubo de cargas, que no Rio de Janeiro atingiu tal volume que o sindicato da indústria alertou para a possibilidade de desabastecimento geral, por desistência das empresas de logística de operar na cidade.
Se o Ministro errou feio nesse ponto, em outro ele acertou no alvo, quando explicou que o mérito de um processo criminal é decidido em definitivo no julgamento em 2a instância. “No STJ se discutem questões de legalidade”, disse ele, “e no STF questões constitucionais”. Mas a presunção de inocência já se desfaz após a sentença em segunda instância que considera o réu culpado. Não é óbvio isso?
E aqui está o núcleo de toda a questão. É um ponto tão claro e cristalino que até uma criança de 10 anos consegue entender, e que é explicado com ênfase pelo Ministro Barroso no seu voto: se todas as sentenças precisam ser confirmadas em quatro instâncias – 1a, 2a, STJ e STF – o resultado só pode ser a paralisia do judiciário e a impunidade generalizada.
Um poder judiciário divorciado de tal forma da realidade das ruas é, para usar as palavras do Ministro, um sistema que “nenhuma lógica ou racionalidade pode sustentar”.
Mas talvez o melhor momento do julgamento tenha sido quando a Ministra Rosa Weber se referiu ao réu – duplamente condenado, vamos lembrar de novo – como “paciente”.
Paciente é o cidadão brasileiro, Ministra. Paciente, contribuinte, vítima e espectador desse espetáculo inacreditável que é a produção e aplicação de leis em nosso país.
Esse cidadão comum, que não tem formação jurídica mas já foi assaltado – e teve toda a sua família assaltada – várias vezes, que respostas claras para várias perguntas:
A quantas instâncias mais o ex-presidente condenado pode apelar? Quantas instâncias existem, afinal?
Há limite para o número de recursos?
Quem paga o custo de todo esse processo?
E a pergunta principal, tão básica e fundamental que mal a conseguimos articular: todo o cidadão brasileiro terá direito ao mesmo tratamento, ou esse é um privilégio reservado para uma casta especial?
A sociedade brasileira aguarda a resposta.
Fonte: “Revista VOTO”, 05/04/2018